sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

O Diário de Anne Frank 1

O Diário de Anne Frank – versões em quadrinhos
            (Neide Medeiros Santos – Leitora votante FNLIJ/PB)

            Erguemos os olhos os olhos para o céu, muito azul.
            Despedidos de folhas e úmidos de orvalho,
            os galhos do castanheiro-da-índia brilhavam.
                        (Anne Frank)

            O Diário de Anne Frank tem me acompanhado em diferentes fases da vida. Cada ano descubro uma nova edição e releio esse livro escrito por uma adolescente judia que não resistiu aos horrores da 2ª. Guerra Mundial. Já li diversas versões: o texto completo (traduzido para português), textos resumidos e adaptados, peça de teatro e sempre descubro alguma coisa que desconhecia, Recentemente recebi três versões em quadrinhos do diário e um livro sobre o castanheiro-da-índia, árvore centenária situada próxima a um dos canais da cidade de Amsterdam, perto do anexo onde Anne Frank ficou com a família por dois anos.  Dos quatro livros recebidos, este último é o mais poético.   

            Da editora  Record, chegou “O Diário de Anne Frank”, uma edição oficial autorizada pelo  “Anne Frank Fonds”. O roteirista e diretor cinematográfico Ari Folman e o ilustrador (quadrinista) David Polonsky traduziram muito bem o contexto da época.  Anexaram informações importantes que levam o leitor a compreender  melhor o drama vivenciado por Anne e sua família.

            Esta edição registra o último texto escrito por Anne Frank no seu diário com a data de 1º. de agosto de 1944.  Ela faz uma análise de sua personalidade. Transcrevemos um pequeno texto para demonstrar o grau de maturidade da menina/moça de 15 anos:     
   
            Como já disse muitas vezes, sou dividida em duas. Um lado contém minha animação  exuberante, minha petulância, minha alegria de viver e, acima de tudo, minha capacidade de apreciar o lado mais leve das coisas.
            (...)
            Na verdade, sou aquilo que um filme romântico representa para um pensador profundo - uma simples diversão, um interlúdio cômico, algo a ser logo esquecido; que não é ruim, mas que também não é particularmente bom. Tenho medo de que as pessoas que me conhecem descubram que tenho outro lado, um lado melhor e mais bonito.  (2017: p.150).
 
            “Anne Frank: a biografia autorizada em colaboração com a Casa de Anne Frank” traz o selo da Companhia das Letrinhas. Sid Jacobson foi o roteirista e Ernie Colon o responsável pela quadrinização do texto. A vida de Anne é contada de forma detalhada, desde o seu nascimento, em 1929, a infância passada em Frankfurt, a ida para Amsterdam ,  os anos no esconderijo  até sua morte precoce no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha. Este livro apresenta uma Cronologia com fotos de Anne, de sua família e de outros personagens envolvidos na história.

            O terceiro livro, também em quadrinhos, é da editora Nemo e foi escrito por Mirella Spinelli, uma mineira de São João del-Rey que é autora  do roteiro e  das ilustrações. É uma adaptação resumida do texto original e termina com a prisão das pessoas que estavam escondidas no anexo.

            Mas foi “A árvore no quintal” o que mais me cativou, uma edição da Galera Jovem (Record)  com texto de Jeff Gottesfeld,  ilustrado por Peter McCarty. A tradução para edição brasileira  é de Luiz Antonio Aguiar.    

            A árvore que aparece na história é um castanheiro-da-índia, personificado,  que tudo vê e observa.   As ilustrações são todas em tom sépia. A sensibilidade artística de Peter McCarty atrai os leitores.   Agindo como uma pessoa, o castanheiro faz um relato do que estava acontecendo a seu redor, principalmente o que se passava no anexo situado na Rua Prinsengracht, 263, em Amsterdam. Via uma menina sempre escrevendo em um caderno, isso  despertava muito interesse. O que estaria escrevendo?   Ele adquire personalidade semelhante à amiga imaginária de Anne Frank, Kitty. 

 Jeff Gottesfeld assim descreve a árvore:  “Suas folhas eram estrelas verdes; suas flores,  delicadíssimos cones bancos e rosa.”  As flores floresciam na primavera, no outono, desprendiam  frutos espinhentos e no inverno se cobria de neve. Com o passar dos anos, a árvore adoeceu, injetaram medicamentos, colheram sementes. Em 2010, foi atingida por uma tempestade forte e um raio cortou seu tronco ao meio. Não resistiu. As  sementes colhidas  espalharam-se  por diversas partes do mundo. Mudas dessa árvore foram plantadas nos Estados Unidos em locais famosos por sua relação com a luta pela liberdade e tolerância, como Colégio Central, Little Rock, Arkansas (Luta pelo fim da segregação, 1957), Museu das Crianças de Indianápolis, Indiana (Parque da Paz Anne Frank), Escola Distrital de South Cayuga, Aurora, Nova York (Parque Histórico Nacional dos Direitos da Mulher). Outras mudas e sementes da árvore foram plantadas pelo mundo afora.   

Concluímos com um pequeno excerto do livro “A árvore no quintal”:
A árvore, assim como a menina, entrou para a história. Assim como a menina, ela vive até hoje.

POEMA DA SEMANA

INTENTO

Quero a solidão que entretém
o pássaro altivo que repousa
no ramo de uma árvore.

Quero a mais elevada companhia.
O pensamento desnudo
na mais lata noite sem presságios.
( Rafael Vasconcelos , Ofício)



domingo, 12 de novembro de 2017

Um amigo para sempre está de volta

Um amigo para sempre” está de volta
            (Neide Medeiros Santos – Leitora Votante – FNLIJ/PB)

                         Cada pássaro,
            Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
                        Cada pássaro é um milagre.
            (Manuel Bandeira. Preparação para a morte).  

 O livro de Marina Colasanti “Um amigo para sempre” (Ed. FTD, 2017), com ilustrações de Guazelli, ganhou nova roupagem e não se perdeu na volta. A 1ª edição do livro foi em 1988 e retorna depois de quase 30 anos, vem com ares de livro artesanal, bonito e enriquecido com o trabalho artístico de Guazelli. Este livro conta a história de uma amizade entre um homem e um pássaro.

            Para Fanny Abramovich, é um conto poético que entrelaça história, biografia, parábola e poesia. Encanta por sua refinada simplicidade. É uma história real: a história da vida do escritor Luandino Vieira que nasceu em Portugal, mas radicou-se ainda criança em Angola e muito lutou pela liberdade do país que o recebeu como filho. Por suas ideias consideradas revolucionárias pelo regime salazarista, pelo desejo de ver Angola livre de Portugal, Luandino ficou preso por vários anos em Luanda, depois foi enviado para o campo de concentração de Tarrafal, situado na Ilha de Santiago, em Cabo Verde.  Os dois últimos anos de prisão foram passados em Lisboa, em prisão domiciliar.  Com a Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974 que pôs fim ao regime de Salazar, Luandino adquiriu liberdade e Angola ficou livre do jugo português.    

             José Luandino Vieira é pseudônimo literário do autor, nasceu em Ourém, Portugal.  Seu nome verdadeiro é José Mateus Vieira da Graça, mas ficou conhecido internacionalmente por Luandino Vieira.  É autor de inúmeros livros, entre eles muitos livros de contos, alguns romances, novelas e um livro de literatura infantojuvenil – A guerra dos fazedores de chuva com os caçadores de nuvens.

             Um amigo para sempre surgiu de um encontro entre Marina Colasanti e Luandino Vieira em Cuba. Nesse encontro, o escritor falou sobre o período que esteve preso e a amizade que fez com um pardal que vinha visitá-lo todos os dias quando ia tomar banho de sol.
 
            Marina Colasanti sempre revelou paixão por pássaros e encontrou um bom motivo para escrever esse livro.  Na apresentação, ela revela que é “uma estória tão bonita que eu gostaria de tê-la inventado”.

            Porque pensava diferente dos que governavam seu país, aquele homem foi preso, assim começa o livro. Todos os dias era a mesma rotina – vinham buscá-lo para tomar banho de sol, era a hora da liberdade e a hora que o pensamento voava como os pássaros. Deitado na grama sonhava, sonhava com a liberdade do seu povo, de um povo que aprendera a amar como se ali tivesse nascido, aquele era o país que havia escolhido para morar e sofria com a falta de liberdade.

            No início, levava um livro para ler, depois preferiu ficar olhando para o céu, para as nuvens, para o verde das árvores que teimavam em pousar suas folhas sobre o muro alto da prisão.  As nuvens, o azul do céu, os passarinhos que passavam voando, tudo era motivo para contemplação e enlevo.

            Resolveu levar um pedaço de pão e ficar mastigando bem devagar. Foi por causa desse pedaço de pão que um passarinho se aproximou do homem. Ele queria as migalhas, o homem observou o interesse do pássaro e de forma bem delicada jogou um pedacinho de pão para o pássaro que logo o recolheu. Todos os dias era a mesma coisa – homem e pássaro dividiam o pão. A partir daí se tornaram amigos – existia uma alegria naquele encontro, alegria do homem e do pássaro, existia a alegria do encontro.

            E o passarinho continuou se aproximando cada vez mais do homem. Passaram-se meses e um dia o passarinho veio comer na sua mão. A notícia se espalhou na prisão – aquele preso político havia domesticado um passarinho Ninguém imaginava que tinha sido fruto de muita paciência, de muita espera. As coisas não se conquistam de forma fácil, foi um longo caminhar.

            Passou o verão, chegou o inverno, mas naquele país o inverno não era rigoroso, daí o espanto do homem no dia em que o passarinho não veio. Ficou aflito. O que teria acontecido? Esperou mais alguns dias, sempre na expectativa de vê-lo outra vez. O passarinho não veio durante semanas, não veio nunca mais. E o homem foi invadido por uma tristeza muito grande, perdera seu amigo.

            Mas como tudo passa, conformou-se. A tristeza foi substituída por outro sentimento e associou o destino do pássaro a seu próprio destino – um dia ele sairia daquela prisão, iria para longe, seria livre e o sol voltaria a brilhar sem a presença de muros e grades, iria sentir o voo da liberdade.

            Para ilustrar esse livro, Eloar Guazelli utilizou sutilezas que combinam com a história. Na capa, vemos um pássaro, folhas de árvores e uma mão que parece chamar o pássaro. As ilustrações internas são simples, poucas cores – nuvens, muros altos, arames farpados, folhas ao vento e a figura constante de um passarinho.

            As páginas do livro são coloridas, mas com tons muito discretos- verde, azul, róseo, apenas um tom mais vibrante – um vermelho alaranjado aparece no meio desses tons suaves. Há outro detalhe que chama a atenção do leitor – todas as folhas do livro vêm coladas à maneira dos livros antigos.  Fui invadida por uma vontade de abri-las, preferi espionar o interior e preservá-las, não quis maculá-las.    
            
            Os textos de Fanny Abramovich, Benjamim Abdala Junior, Ruth Rocha e de Gauzelli que estão encartados no livro ajudam a compreender melhor o trabalho literário de Marina Colsanti e a vida do idealista  Luandino Vieira.

           
            NOTAS LITERÁRIAS E CULTURAIS
EDINÓLIA MARTHA DE SOUZA – UMA LEITORA MUITO ESPECIAL

            Uma visita à biblioteca Durmeval Trigueiro, na Fundação Casa de José Américo, e a descoberta de um tesouro. Familiares de Edinólia Souza doaram à biblioteca Durmeval Trigueiro todos os livros de literatura de quem passou a vida na companhia de bons livros. Há preciosidades, como uma edição de “Crime e Castigo”, de Dostoievski, uma tradução do francês de Raquel de Queirós, com ilustrações de Tomás Santa Rosa. Outros livros, todos muito bons, nos levam a recordar de Edinólia e de sua figura simples, reservada.

 Lembro-me muito bem de Edinólia comparecendo aos lançamentos de livros nas livrarias de João Pessoa, na Fundação Casa de José Américo, no Centro Cultural Joacil de Brito Pereira.   Quando lançava meus livros convidava-a, e ela sempre se fazia presente. Descobri, no meio de valiosas relíquias, um livrinho fino que publicamos em homenagem a Violeta Formiga - lá estava um oferecimento carinhoso e um marcador de livro artesanal, confeccionado pelo artista plástico Miguel Bertollo – três singelas violetas, pintadas em aquarela na companhia desses versos: “Eu amo o dia porque dele surge as madrugadas”. 
 
Edinólia me disse certa vez que quando lia um livro de um escritor que gostava, procurava comprar todos os livros daquele autor.  Nesse rico acervo, encontram-se vários livros de José Saramago, Mário Vargas Llosa, Mia Couto, Virgínia Woolf, Fernando Pessoa, Drummond. A bibliotecária Nadígila Camilo e bibliófilo Francisco de Assis me chamaram a atenção para algumas curiosidades guardadas dentro dos livros – recortes de jornais, fotografias dos escritores, breves comentários. As marcas de grifos nas frases, nos parágrafos dos livros indicam que todos foram lidos.  É muito bom que esse acervo esteja abrigado na biblioteca da Fundação Casa de José Américo.  São 538 títulos à espera de novos leitores.



                        POEMA DA SEMANA
                       
                        A vida é um milagre.
                        Cada flor,
                        Com sua forma, sua cor, seu aroma,
                        Cada flor é um milagre.
                        Cada pássaro,
                        Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
                        Cada pássaro é um milagre.
                        O espaço infinito,
                        O espaço é um milagre.
                        O tempo infinito,
                        O tempo é um milagre.
                        A memória é um milagre.
                        A consciência é um milagre,
                        Tudo é milagre.
                        Tudo, menos a morte.
                        - Bendita a morte que é o fim de todos os milagres.

                        ( Manuel Bandeira. Preparação para a morte).
                       

                        

sábado, 4 de novembro de 2017

E o poeta virou guriatã

E O POETA VIROU GURIATÂ

(Neide Medeiros Santos – Leitora votante – FNLIJ/PB)
            As pessoas não morrem, ficam encantadas.
            (Guimarães Rosa. Do discurso de posse na ABL).

O poeta Marcus Accioly virou guriatã e partiu deixando saudades e muitos livros de poesia, alguns dedicados à literatura infantil, como o premiado Guriatã: um cordel para menino que teve a 1ª edição em 1980 pela editora EBAL. Seguiram-se outras edições deste livro.

Guriatã: um cordel para menino é uma composição literária de caráter telúrico.  Composto de 91 poemas e cinco notas que explicam a gênese do livro, o poeta procura resgatar a infância perdida, o “país-paraíso” do engenho Laureano. O xilógrafo Dila, o ilustrador, traduziu plasticamente o conteúdo do texto. Modalidades de cantoria (martelos, toada-alagoana, canções suspirosas, desafios, mourões); poemas dialogados (de um Guriatã-de-coqueiro, da volta do Guriatã, dos dois Guriatãs, do retorno de Guriatã, e do Guriatã por último) e poemas independentes, de grande expressividade lírica estão representados por (do-trem-de-ferro, dos elementos).  O grande poema se encerra com um acróstico com o nome do poeta.  

 O “locus amoenus” da região canavieira não é privilégio da zona da mata pernambucana nem paraibana (veja-se José Lins do Rego e os romances do ciclo da cana-de-açúcar) está presente na região da Provence, tão bem retratada por Paul Cézanne em suas telas; nos riachos e rios da Champagne, nos escritos poético/filosóficos de Bachelard; no mundo encantado do sitio do Picapau de Monteiro Lobato; no país de São Saruê, do poeta popular Manoel Camilo dos Santos.

Para ser fiel às origens populares, o livro foi ilustrado com xilogravuras do artista pernambucano – Dila. As xilogravuras impressas, em quase todas as páginas, seguem a técnica tradicional da xilogravura (preto e branco). O “poeta da mão”, parar usar a expressão de Gaston Bachelard, caminhou pari-passu com Accioly que descreve paisagens, animais, mitos populares e eruditos.  Dila procura dar “sopro de vida” a tudo que povoa a mata norte de Pernambuco.

Nos livros de poesia de Accioly, estão presentes o cordelista e o poeta erudito. Na entrevista concedida ao jornalista Mário Hélio (Jornal do Commercio, Recife, 3 de março de 1995, p.10), ele assim se expressou:
O cordel foi a literatura da minha infância, os folhetos do Engenho Laureano, e a cidade de Aliança. Tudo o que consegui com a poesia (e devo tudo a ela) foi encontrar o possível equilíbrio entre a lucidez e a loucura, entre a tradição e a vanguarda, entre a inspiração e a transpiração, entre o popular e o erudito.
[...]
            Sou, como já disse, um profissional do canto. Nada fiz que não fosse poesia. O resto é um arremedo que acabará no silêncio.

            Após essas pequenas digressões, que consideramos válidas para entender um pouco da poesia e do poeta, voltemos ao livro.

            Guriatã: um cordel para menino é uma “história-estória” de dois meninos, que se estrutura seguindo a ordem de um poema épico: prólogo, invocação às musas, episódios, epílogos.
            Todos os poemas do livro vêm numerados por algarismos romanos. O primeiro poema, um dos mais longos do livro, traz o subtítulo de “prólogo” e contém nove estrofes distribuídas em sextilhas; o segundo, com o subtítulo “da família de Sucram”, é formado por quatro estrofes com versos em oitavas. Nesses dois poemas, temos a apresentação dos protagonistas Leunam e Sucram. Esses nomes incomuns resultam dos anagramas dos nomes Manuel e Marcus. Manuel foi um amigo de infância do poeta que morreu muito cedo. No reino do faz de conta, Leunam se transformou em guriatã.

            O terceiro poema apresenta um corte narrativo, traz o subtítulo “Guriatã de coqueiro” e nele aparece a terceira personagem importante da história – o pássaro Guriatã. No decorrer da narrativa poética, observamos que Guriatã passa a integrar a história e recebe o mesmo tratamento dado aos meninos Sucram e Leunam.

            Um dos poemas mais emblemáticos do livro é “do-trem-de-ferro”, uma homenagem ao avô do poeta – José Pedro Bezerra de Mello (Dedé). Esse avô tão querido e admirado pelo neto morreu enfartado na estação ferroviária de Aliança quando Accioly contava dez anos. Com a morte do avô, acabou-se também a infância do menino.

            O poema “do-trem-de-ferro”, visto como um todo, é formado por um refrão que se repete cinco vezes em cinco estrofes com sete versos em redondilha menor. O conjunto, no total de 40 versos, ordena-se de forma simétrica, dando-nos a impressão de um trem com vários vagões encaixados verticalmente. As estrofes com sete versos cada uma seriam os vagões que conduzem os passageiros e os refrões seriam os elos que unem os vagões. 

             Transcrevemos uma das estrofes do poema “do-trem-de-ferro” para que o leitor sinta como ele se estrutura.
            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o grito da ponte
            debaixo do trem,
            é o vento que chora
            por morte de alguém,
            é o choro das almas
            que dizem amém.

            Quem grita na noite?
            [...]
            Este poema, na sua íntegra, foi recitado pelo poeta Marcus Accioly durante o Congresso Internacional de Literatura Popular realizado na Fundação Casa de José Américo em 2005. Naquela ocasião, Marcus Accioly compareceu para o lançamento do livro “Guriatã: uma viagem mítica ao país-paraíso”.

            Um lembrete para aqueles que desejarem adquirir o livro “Guriatã: um cordel para menino” existe uma nova edição da editora Bagaço.
( Publicado no jornal “Contraponto”. Paraíba, 27 de outubro de 2017).
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            Nota: O jornal “Contraponto” voltou a circular e com ele o blognastrilhasdaliteratura volta com novidades. Toda semana será publicado um poema de autor brasileiro.  Como leitora e amante da boa poesia, escolheremos poemas que nos cativam pela beleza poética e sensibilidade. Para inaugurar essa nova etapa, segue o poema “trem-de-ferro”, do poeta pernambucano Marcus Accioly, desaparecido recentemente. O poema será sermpre publicado na íntegra.

                        XXXIII - do-trem-de-ferro

            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o eco do grito
            do apito do trem,
            é a boca-da-noite
            que grita também,
            é o eco do eco
            que ecoa no além.

            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o grito da ponte
            debaixo do trem,
            é o vento que chora
            por morte de alguém,
            é o choro das almas
            que dizem amém.

            Quem grita na noite?
           
            Não vejo ninguém,
            é a boca-do-túnel
            na frente do trem,
            é o grito sem grito
            de um eco que vem
            dos montes que aos montes
            ecoam mais cem.

            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o sonho-barulho
            das rodas do trem,
            é a luz de uma estrela
            que tange belém
            no sino-silêncio
            que a noite não tem.

            Quem grita na noite?

            Não grita ninguém,
            é o trem dos fantasmas
            nos trilhas sem trem,
            é a voz dos dormentes
            que às vezes contém
            o grito da vida
            que a morte detém.

( Do livro: Guriatã: um cordel para menino).

           



terça-feira, 15 de agosto de 2017

Sobre leitura e livros


Fundação Casa de José Américo
Dia do Escritor – 25 de julho
                               Sobre leitura e livros
            (Neide Medeiros Santos – FNLIJ/PB)

            Pedro tem
palavras de ouro e um pião

com palavras, Pedro
inventa umas histórias
que o tapete do vento
desenrola no alto
de oito colinas
(...)
com o pião, Pedro
faz girar o mundo na palma da mão
.
(Peter O ´Sagae. Pedro faz com o que Pedro tem. Do livro “Uma noite para João e outros poemas”).
           
Século XIX (Anos 1830)
             No Brasil colonial, poucas eram as mulheres alfabetizadas. A escritora potiguar Dionísia Gonçalves Pinto, que ficou conhecida no mundo das letras como Nísia Floresta Brasileira Augusta, foi a primeira mulher no Brasil a publicar um livro - “Direito das mulheres e injustiça dos homens” (1832).  É uma tradução livre e repleta de comentários de um livro feminista inglês “A vindication of the rights of woman” (1792) da escritora inglesa Mary Wollstone-craft.

 Mas Nísia Floresta também escreveu poesia. O poema “A lágrima de um caeté” trata dos problemas dos índios. Não é uma visão ufanista como a de José de Alencar, apresenta um índio derrotado pelo invasor branco. Era uma visão bem realista. Nísia Floresta escreveu também artigos para jornais e revistas literárias. Era uma ativista cultural em uma época de domínio dos homens na vida política, na imprensa, na literatura.  

 O pseudônimo que adotou e com o qual ficou conhecida foi inspirado nos seguintes fatores: sua paixão pelo campo (Floresta),orgulho de sua nacionalidade (Brasileira) e o amor pelo marido (Augusto) . Essas informações aparecem no texto “A primeira mulher a escrever um livro no Brasil”, de Marcel Verrumo (2017: 120-124).

Nísia Floresta foi escritora, professora e educadora. Fundou, no Rio de Janeiro, o Colégio Augusto, dedicado à educação feminina. O nome do colégio era uma homenagem ao seu segundo marido, Manuel Augusto de Faria Rocha.   Esse colégio tinha um diferencial dos outros colégios destinados às moças – enfatizava o ensino de línguas estrangeiras,  história, aritmética e português, igual ao ensino direcionado aos meninos.  Antes desse colégio inovador, as moças aprendiam piano, francês, a bordar e a costurar. As escolas para meninas eram verdadeiras escolas domésticas. Nísia Floresta revolucionou o ensino feminino no Brasil no século XIX (2ª metade do século XIX) com essa escola no Rio de Janeiro.  É considerada a primeira feminista brasileira.

 Século XX (Anos 1900/1910)
            O escritor Graciliano Ramos ao relatar fatos da sua infância passada em Buíque, Pernambuco, nos primeiros anos do século XX, faz uma leitura da cidade que é uma leitura do mundo. Para o pequeno Graciliano, que tinha apenas seis anos e não sabia ler, Buíque tinha a aparência de um corpo aleijado. A igreja era a cabeça, o largo da feira era o tronco; a Rua da Pedra e a Rua da Palha eram as pernas, uma quase estirada e a outra curva; um dos braços era representado pela Rua da Cruz, com o cemitério velho.  Assim era a leitura que o menino fazia da vila de Buíque. 

Alguns anos mais tarde, com dez anos, morando em Viçosa, estado de Alagoas, e já sabendo ler, descobriu a biblioteca do tabelião Jerônimo Barreto. Todos os dias passava em frente à casa do tabelião e via uma estante cheia de livros. Namorava aqueles livros, lançava olhos compridos para a estante, mas não tinha coragem de entrar na casa e pedir emprestado algum daqueles exemplares que se mostravam perfilados na estante.  Certo dia criou coragem, dirigiu-se ao tabelião e manifestou o desejo de ler um daqueles livros. O tabelião mandou-o entrar e ofereceu “O Guarani”, de José de Alencar. Depois muitos outros foram emprestados, lidos e devolvidos.  O atrevimento do menino fez com que se tornasse um leitor contumaz. Nas palavras de Graciliano, a leitura tornou-se um vício. Depois que “desasnou” não parou mais de ler.

   No início do século XX, com a criação das escolas normais, a mulher deixou um pouco os afazeres domésticos e passou a exercer a função de professora, mas escrever continuou sendo coisa de homem, poucas eram as mulheres que se aventuravam a escrever para revistas e jornais.  Na Paraíba, nos anos de 1920, destaca-se a figura da professora Eudésia Vieira. Formada pela Escola Normal da Paraíba em 1911, Eudésia dedicou-se, além do ensino primário a lecionar História do Brasil, publicava livros e  escrevia  para revistas e jornais da Paraíba. Foi a primeira mulher a pertencer ao Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (1922).  Publicou livros de História do Brasil e da Paraíba, de poesia e de memórias.  Alguns anos mais tarde, em 1930, resolveu cursar medicina em Recife e teve que se ausentar do marido e dos filhos. Sofreu pressões da família, mas não desistiu.  Obstinada como era, frequentou o curso de medicina e formou-se pela Faculdade de Medicina do Recife em 1934. Foi a primeira mulher da Paraíba a ter o título de doutora em medicina.

Anos 1920
 Dentro desse universo de escritores e educadores preocupados com o ato de ler, desponta Monteiro Lobato. Ele é considerado o “divisor de águas” da literatura infantil no Brasil. Sabendo que o gosto pela leitura começa na primeira infância. Lobato investiu na criança e escreveu muitos livros destinados a esse público, alguns com caráter didático, como “Aritmética da Emília”. “Geografia de Dona Benta”, outros ficcionais, apelando para a fantasia e a imaginação. Nesse caso, citam-se “As reinações de Narizinho”, “Caçadas de Pedrinho”, “Memórias da Emília”. Lobato era tão preocupado com os livros de leitura para crianças adotados nas escolas brasileiras que, em carta ao amigo Godofredo Rangel, externou esse pensamento: “gostaria de escrever livros onde as crianças pudessem morar neles”. Esse sonho foi concretizado. O sítio do Picapau Amarelo é um lugar utópico, idealizado, de muita liberdade. Engana-se quem pensa que não havia estudo no sítio do Picapau. Dona Benta lia histórias para as crianças, contava histórias verdadeiras e imaginárias. Tia Nastácia sabia de cor muitos contos populares e transmitia seu saber para as crianças do sítio, assim elas iam recebendo informações ligadas à cultura erudita e à popular por meio das duas contadoras de histórias.   

A perseguição à leitura e ao livro é constante nos regimes autoritários. Lobato foi vítima dessa perseguição. Nos anos 1940, seus livros foram queimados em praça pública na cidade de Salvador sob a acusação de que eram heréticos, isto é, contrários à doutrina da igreja católica.  Em seus livros, Lobato não fala em religião, os meninos vivem livres de compromissos com a igreja.

Anos 1930
Outros escritores também passaram constrangimentos por suas atitudes independentes. Cecília Meireles, poeta, professora, jornalista e educadora sofreu com a incompreensão de um governo totalitário.  Nos últimos anos de 1930, foi convidada por Anísio Teixeira, Diretor do Departamento Educação, para dirigir a primeira biblioteca infantil no Brasil. Essa biblioteca funcionou no “Pavilhão Mourisco”, no Rio de Janeiro. Era uma biblioteca modelo e Cecília Meireles sentia-se gratificada pelo convite e por exercer tão importante cargo. Nesse período, o Brasil estava sob o regime do Estado Novo, tempo de repressões políticas. Tudo que não fosse fiel ao governo era censurado.

 A biblioteca infantil, dirigida por Cecília Meireles, foi acusada de ter em seu acervo um livro de tendências comunistas, o que não era verdade.  O livro, considerado comunista  pelos censores do governo,  era “As aventuras de Tom Sawyer”, do escritor norte-americano Mark Twain. Por conta dessa falsa acusação, a biblioteca foi fechada e a diretora destituída de sua nobre missão. Mais uma arbitrariedade cometida por quem desejava divulgar o livro, a leitura e tinha compromissos com a educação.      

            Depoimentos de usuários dessa biblioteca, como a do poeta Geir Campos, atestam o valor desse lugar mágico para a infância do Rio de Janeiro. Além de atividades ligadas à leitura, a biblioteca oferecia brincadeiras, jogos, atividades artísticas, sessões de cinema. Era uma verdadeira casa de cultura. Com sua prática pedagógica e o olhar voltado sempre para a educação, Cecília Meireles incentivava o gosto pela leitura através da literatura.

            Anos 1950/1960
             Bartolomeu Campos de Queirós, autor de muitos livros para crianças e de livros sobre leitura e literatura, ao recordar fatos da sua infância, vivenciada nos anos 1950, destaca a figura do avô por parte de pai. Chamava-se Joaquim Queirós. O menino foi criado por esse avô durante certo tempo, era o neto preferido de Sr. Joaquim. O avô vivia na janela olhando o povo passar e observando a cidade. Tudo que acontecia, ele escrevia nas paredes da casa – as noticias do lugar: quem viajou, quem casou, quem morreu. Foi nessas paredes que o pequeno Bartolomeu aprendeu a ler. 

            O menino perguntava para o avô: Que palavra é essa? E aquela? E ele ia explicando tudo ao neto. Quando chegou a fase de ir para a escola, já conhecia as letras e sabia ler, foi alfabetizado com os escritos da parede da casa do avô.  Havia também o quintal da casa, lá ele rabiscava com carvão as coisas que ia aprendendo com o avô. Era a sua leitura do mundo.   
   
            Há um depoimento de Bartolomeu Campos de Queirós (2014: 37) muito poético que merece ser registrado. Ele fala sobre o primeiro livro que leu.

            O primeiro livro que li foi o “papel roxo da maçã”. Meu pai viajava e trazia maçãs embrulhadas em papel fino, frio, roxo e muito perfumado. Maçã era coisa rara naquele tempo. Era presente que se oferecia no Natal aos doentes ou aos meninos que procediam bem durante a ausência do pai. Então nós, seis irmãos, colocávamos o papel roxo da maçã entre a fronha e o travesseiro. Durante as noites eu lia no cheiro do papel que existia outra terra. Lia que o mundo não terminava no alto da serra. Sentia a certeza de que havia outro lugar onde maçã se chamava manzana.

            Anos 1980
            A escritora Lygia Bojunga Nunes, primeira escritora brasileira a  ganhar o Prêmio Andersen de literatura infantil, em 1982, conta como foi seu aprendizado com a leitura no texto “Livro: a troca”.  Ela dá lições de vida e fala sobre sua própria vivência com os livros.  Eis o texto:  
Pra mim, livro é vida; desde muito pequena os livros me deram casa e comida. 

Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé fazia parede; deitado, fazia degrau de escada; 

inclinado, encostava num outro e fazia telhado.


E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro.


De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar prás paredes).
Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras.

Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça.
Mas fui pegando intimidade com as palavras.
E quanto mais íntimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas.
Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação.
Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; 
e de barriga assim cheia me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, 
era só escolher e pronto, o livro me dava.
Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que 
- no meu jeito de ver as coisas - 

é a troca da própria vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava.
Mas como a gente tem mania de sempre querer mais, 


eu cismei de um dia alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra - em algum lugar - 


uma criança juntar com outros e levantar a casa onde ela vai morar.
Século XXI (Anos 2000)
            Ana Maria Machado, outra escritora de livros para crianças, ganhadora também do Prêmio Andersen de Literatura (2000), foi a primeira escritora de literatura infantil a pertencer à Academia Brasileira de Letras, chegando a ocupar a Presidência da Casa Machado de Assis entre  2012/2013. No livro  “Essa força estranha. Trajetória de uma escritora” (Ed. Atiual, 1996),   relata como descobriram que já sabia ler, isso quando ainda não tinha cinco anos.
            Frequentava a escola e aprendia as primeiras letras. Certo dia a professora enviou para sua mãe um bilhete pedindo papel crepom para as festividades de encerramento do ano letivo. Ana Maria iria tomar parte em uma peça teatral e faria o papel de uma dália. No caminho, a menina leu o bilhete e ao chegar a casa deu o recado à mãe, mas foi logo contestando:  só seria dália se o papel crepom fosse amarelo. A mãe e a professora souberam  nesse dia que Ana Maria já sabia ler. Para seu contentamento, no Natal,  ganhou dois livros de presente da família – “Almanaque do Tico-tico” e “Reinações de Narizinho”.  Outras histórias de suas leituras infantis e juvenis são reveladas nesse livro.   
            Cada leitor tem sua própria história da leitura. Ela é diversificada, pode ser externada por meio de um texto, de um poema, de um quadro, de uma música, de uma escultura. Há muitos caminhos. O professor e crítico literário Hildeberto Barbosa Filho (2017: 123) no texto “Ler só dá prazer”  afirma:

            (...) o ato de ler alcança dimensões além do simples ensinamento. É com eles que ler também dá prazer – só dá prazer. Prazer no sentido mais rico e mais crítico da palavra.

            Para concluir essas breves considerações que objetivou despertar em cada um dos leitores o desejo de revelar a sua própria historia de leitura, segue um exemplo do aprendizado de leitura em forma de um poema em prosa:

             ONTEM/HOJE
            Minha mãe tentou me ensinar a costurar,
            não afinei com o ofício de costureira.
            Meu pai me presenteou com dicionários,
            gostei de ler palavras
            e descobri o mundo dos livros.

            Hoje escrevo para espantar meus fantasmas. 

                                   (NMS)

            REFERÊNCIAS

BARBOSA FILHO, Hildeberto. Os livros (a única viagem). João Pessoa: Ideia, 2017.
COUTINHO, Ana Maria; SANTOS, Evanice. Eudésia Vieira: rompendo o silêncio. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2008.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez Editora &Autores Associados, 1991,
MACHADO, Ana Maria. Essa força estranha. Trajetória de uma escritora. São Paulo: Atual, 1996.
O´SAGAE. Peter. Uma noite para João e outros poemas. São Paulo: Paulinas, 2017.
RAMOS, Graciliano. Infância. 38 ed, revisada. Rio de Janeiro: Record, 2006.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Contos e poemas para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
SANTOS, Neide Medeiros. Autores e livros em contraponto. João Pessoa: Mídia Gráfica e Editora Ltda, 2016.
VERRUMO, Marcel. História bizarra da literatura brasileira. São Paulo: Planeta, 2017.
 Na web

BOJUNGA NUNES, Lygia. Livro: a troca. Disponível em pausapraleitura. blogspot.com.br/2011/05/so-para-refletir-html- acesso em 17 de julho de 2017.