quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Tá pronto seu lobo? E outros poemas












Tá pronto seu lobo? E outras brincadeiras infantis 
( Neide Medeiros Santos - FNLIJ/PB) 


                        Se a poesia bater à porta,
                        abra como a um amigo.
                        Poesia é luz,
                        alimento e abrigo.
            (Eloí Bocheco. Abrindo a porta. In: Tá pronto seu lobo? E outros poemas).

            Quando pensamos no binômio criança/música, lembramo-nos das cantigas de roda e das brincadeiras infantis de rua. Qual foi o menino ou menina que não brincou de pega, chicote queimado, anel, Tá pronto seu lobo? E as cantigas de roda: Terezinha de Jesus, A canoa virou, Sapo cururu, Roda pião? Elas estão presentes na memória de quem brincou nas calçadas das pequenas cidades nas noites de lua cheia.  

 Se hoje não encontramos crianças brincando de roda nas calçadas, principalmente nas grandes cidades, nas escolas essas brincadeiras ainda têm um lugar reservado.  CDs e DVDs com cantigas de roda são publicados todos os anos pelas editoras brasileiras e os escritores revisitam essas cantigas através da poesia ou de textos memorialísticos. 

            Eloi Bocheco, no livro “Tá pronto seu lobo? E outros poemas” (Ed. Formato, 2014), retoma algumas dessas cantigas e brincadeiras infantis de forma criativa e prazerosa. Os poemas do livro podem ser agrupados em: cantigas de roda, brincadeiras infantis, parlendas e poemas independentes. O trabalho de recriação está presente em todas as modalidades.

            Em nota que aparece na última página do livro, a autora explica que “Os primeiros acordes de poesia vieram da boca dos contadores e declamadores” de sua infância e que foi uma grande “ouvidora poética” dos cantares e do cancioneiro oral.

            O livro “Tá pronto seu lobo? E outros poemas” nos levou ao encontro de “Cancioneiro da Paraíba”, coletânea organizada por Maria de Fátima Batista e Idelette Fonseca dos Santos que reúne um vasto repertório de cantigas de ninar, cantigas de roda, parlendas e outras cantigas que são encontradas em diferentes regiões da Paraíba, abrangendo o litoral, brejo, cariri e sertão.

            Chamamos a atenção do leitor para este aspecto: as organizadoras do “Cancioneiro da Paraíba”, publicado em 1993 pela editora Grafset, foram fiéis as transcrições dos textos coletados. Oitenta e seis informantes, de origem paraibana ou aqui radicados, apresentaram cantigas, parlendas, orações, tudo fruto da vivência com a cultura popular paraibana. Eloí Bocheco apelou para a memória e imaginação, deu “hora e vez” à sua veia poética. De forma lúdica, deixou transparecer o eu poético de maneira livre e descompromissada.

            Um confronto entre a cantiga “Alecrim” que aparece no “Cancioneiro da Paraíba” e no livro “Tá pronto seu lobo? E outros poemas” denota, por parte das pesquisadoras, a fidelidade ao texto cantado, enquanto que em Eloí aflora a poeticidade e liberdade poética.

            Alecrim,
            Alecrim dourado
            Que nasceu no campo
            Sem ser semeado.

            Ai! Meu amor
            Quem me disse assim
            Que a flor do campo
            É o alecrim.

(Alecrim do Campo. In: Cancioneiro da Paraíba. Idelette Fonseca dos Santos e Maria de Fátima B. de M. Batista (Organizadoras). João Pessoa: Grafset, 1993, p. 140 Cantado por Miriam M. Machado, Queimadas, PB).

            O poema de Eloí traz o título – “Alecrim” e apresenta três estrofes. Iremos fazer a transcrição apenas da 1ª estrofe e já podemos sentir as diferenças:
   
            Alecrim,
            alecrim dourado
            que nasceu do campo
            sem ser semeado.
Diga, alecrim,
se você é encantado
se veio do céu,
ou de outro lado.
(Alecrim. Eloí Bocheco. In: Tá pronto seu lobo? E outros poemas. Ed. Formato, 2014, p.31).

Os quatro primeiros versos são iguais nas duas cantigas, a partir do quinto verso observamos as diferenças, mas nas duas canções, a planta é tratada de forma personificada. Na segunda versão, o apelo para que o alecrim se manifeste - “se é encantado, se veio do céu ou de outro lado” - se verifica através do modo imperativo, um imperativo que pede uma resposta, porém sem as imposições que caracterizam esse modo verbal.
  
Os dois livros apresentam maneiras distintas de registrar as cantigas de roda. O “Cancioneiro da Paraíba” é um trabalho investigativo, uma pesquisa; o outro é um livro de poemas e não se prende ao registro fiel do que foi cantado, o poeta é livre para modificar, ampliar, externar seu eu poético como lhe apraz.

Lembramos que o livro “Cancioneiro Paraibano” foi ilustrado com bico de pena pelo artista plástico Domingos Sávio, natural da Paraíba, e traz o registro musical das cantigas, resultado também de pesquisas, de Maria Alix Nóbrega Ferreira de Melo. “Tá pronto seu lobo? E outros poemas” recebeu ilustrações de Suryara Bernardi que tem formação em Design Gráfico. As ilustrações são grandes, graciosas e vêm marcadas por um toque de charme aliado ao humor.
   
“Cancioneiro da Paraíba” nasceu em terras paraibanas, “Tá pronto seu lobo” veio de terras mais distantes – Santa Catarina. De um lado, a pesquisa, a coleta precisa dos dados, os registros orais, do outro, a junção do real com o imaginário, é a poesia abrindo a porta e pedindo alimento e abrigo.

LEITURA RECOMENDADA
            Os ratos amestrados fazem acrobacias ao amanhecer. Políbio Alves. João Pessoa: FUNESC, 2014.
            Ganhador do Prêmio Augusto dos Anjos – 2013, o livro de contos de Políbio Alves “Os ratos amestrados fazem acrobacias ao amanhecer”  apresenta sete contos que se caracterizam por uma linguagem entrecortada, “estilo soluçante” à moda de Samuel Rawett, isto é, um estilo marcado por pausas. Na literatura brasileira, além de Rawett, Graciliano Ramos também foi adepto desse estilo. E lembramos o conto “Gringuinho”, de Rawett, uma verdadeira aula de concisão. Políbio  aprimora-o. Há frases que exigem apenas uma palavra ou uma breve expressão,  como no conto “Meteorango dia”:
            Nada. E tudo. Coisas do cotidiano. Desaforadas. (p.9)
            Cabe ao leitor polibiano completar o que o contista apenas sugere.

( Texto publicado no jornal "Contraponto". Paraíba, 30/01 a 05 de fevereiro de 2015) 






Marcos Bagno: um escritor múltiplo

            Marcos Bagno: um escritor múltiplo

            Escrever sempre foi para mim um jeito de me conhecer mais a fundo, de refletir melhor sobre o que eu penso, quero e sei.
            (Marcos Bagno. In Murmúrio).  


             Marcos Bagno é escritor, professor, dicionarista e tradutor mineiro. Gosta de viajar e já morou em diversas cidades do Brasil. Nos anos 1990, morava em Recife no Poço da Panela, era aluno do Mestrado em Letras na UFPE e escrevia livros para o público infantil.   O gosto pela literatura infantil perdura até hoje, mesmo dedicando-se ultimamente ao magistério na UNB.

            O autor costuma dizer que só escreve porque lê. E quando as pessoas perguntam o que devem fazer para se tornar escritores, dá sempre essa resposta: “Leiam muito primeiro, porque quem não lê não escreve”. Fica a lição para aqueles que têm a pretensão de ser escritor.  

            Além de escrever livros voltados para a linguística, dicionários, temas ligados à leitura, Marcos Bagno sempre volta aos infantis. Escrever para crianças e jovens é uma das paixões desse escritor múltiplo. 

            Nos anos 1995/1996, encantei-me com dois livros escritos por Bagno – “O papel roxo da maçã” e “Um céu azul para Clementina”. O título deste primeiro livro foi inspirado em uma fala de Bartolomeu Campos de Queirós no Encontro do Prêmio Nestlé de Literatura (São Paulo - 1988). Falando sobre sua experiência com a literatura, Bartolomeu confessou que a sua primeira leitura fora o papel roxo da maçã que seu pai trazia das longas viagens (o pai de Bartolomeu era caminhoneiro). “Um céu azul para Clementina” é um livro de temática ecológica. O texto gera uma discussão em torno de problemas ligados à poluição.

            Os anos se passaram e Bagno continuou escrevendo para crianças. Pela editora Positivo (Curitiba), tem publicado vários livros para o público infantil. “Marcéu” (Positivo, 2013) recebeu prêmios nacionais, entre eles, o Prêmio Brasília de Literatura (categoria juvenil), o Prêmio Glória Pondé da Biblioteca Nacional e o selo Altamente Recomendável da FNLIJ (2013). Este livro é uma homenagem a seu irmão Marcelo, desaparecido nas águas de um rio após forte chuva. O fato é real e Bagno transformou o drama vivenciado pela família em ficção. Na internet, encontramos um vídeo em que o escritor lê trechos desse livro. É só conferir.
   
            Mais recentemente recebi o livro “Murmúrio” (Ed. Positivo, 2014) que guarda afinidades com histórias de encantamento e se caracteriza por uma linguagem poética. A leitura é tão cativante que não conseguimos parar no meio, nosso desejo é continuar a leitura até encontrar o ponto final.

            Aproveitando-se de uma antiga lenda sobre um sábio chinês que sonhava que era uma borboleta, Bagno escreveu uma história que envolve um encontro com uma borboleta, um sonho e a doença de um príncipe.
 
            O primeiro parágrafo do livro demonstra que estamos no mundo  encantado das palavras:  
            Num pequeno reino escondido entre as montanhas mais altas deste lado do mundo, a nove dias de viagem a pé dos muros de sua bela capital, morava em absoluta solidão um homem muito idoso, numa choupana às margens da grande estrada rasgada à sombra das vertiginosas vertentes. (p.7).

            E o que fazia esse homem solitário? Cultivava flores de várias qualidades, tamanhos e odores. Sua maior alegria era poder alegrar a vida das pessoas presenteando-as com flores.

            Um dia, cuidando do jardim, descobriu uma borboleta de indescritível beleza. O sábio jardineiro apaixonou-se pela borboleta, conversava com ela, tinha carinhos de pai. Agora não era apenas o jardim que exigia sua atenção, tinha outra tarefa a cumprir – cuidar da bela borboleta.

                Depois de alguns dias, observou que a borboleta escolhera uma folha, a maior de todas, e se escondeu sobre ela. O que estaria fazendo naquele esconderijo? Não quis espiar o que estava por trás da folha para não ser indiscreto. Saindo do seu recolhimento, a borboleta alçou voo, veio um pássaro vermelho apanhou a frágil borboleta e engoliu sem deixar vestígios. O jardineiro ficou desconsolado.

            E o narrador continua com sua prosa poética:
            Foi tudo tão veloz e tão triste que o jardineiro demorou alguns minutos até perceber que aquela história de amor, que mal tinha começado, já pertencia as páginas amareladas do livro da saudade. E por isso ele chorou uma única lágrima, pequena como a borboleta desaparecida, mas tão sincera quanto sua beleza. (p.13 -14).

             A história prossegue. O jardineiro ficou triste com o desaparecimento da borboleta, restava uma esperança – ela havia depositado alguma coisa naquela folha do jardim e daquele segredo poderia surgir uma nova vida.

             E vem o terceiro momento da história. Certo dia o velho sábio recebeu uma visita inesperada de três cavaleiros, eles disseram que eram médicos e estavam a caminho da capital para atender ao chamado do rei. O príncipe, um rapaz de dezoito anos, estava muito doente. O velho jardineiro resolveu enviar um presente para o príncipe – um pote de vidro e dentro do pote um ovo de borboleta. Se não tivesse o poder de curar o jovem príncipe, aquela lembrança  poderia proporcionar-lhe alguns momentos de satisfação, disse o velho jardineiro aos cavaleiros. 

            E o resto? O resto se não é silêncio, é apenas murmúrio. O velho sábio, o príncipe e a borboleta irão se encontrar em algum lugar.