sábado, 3 de janeiro de 2015

O Gato Marquês



                UM GATO MUITO ASTUCIOSO E UM PASSARINHO INGÊNUO 

                        (Neide Medeiros Santos – Leitora votante FNLIJ/PB)

                        Gato que brincas na rua
                        Como se fosse na cama,
                        Invejo a sorte que é tua
                        Porque nem sorte se chama.
                        (Fernando Pessoa)

            Os antigos chamavam de “idade de ouro” a fase em que os homens, semelhante aos deuses, não sabiam o que era cansaço nem dor, todos levavam uma vida amena e pacífica. Esse tempo recebeu a denominação “idade do ouro” porque tinha a pureza, a riqueza e a eternidade do ouro.

            A literatura infantil é pródiga em livros que nos remetem à idade de ouro, e citamos como exemplos de paraíso infantis: o sítio do Pica Pau Amarelo, de Monteiro Lobato, o país de Tatipirun, de Graciliano Ramos, o engenho Laureano, poeticamente retratado por Marcus Accioly, em “Guriatã: um cordel para menino” e o engenho Corredor, palco de muitas histórias contadas pela velha Totônia e reunidas no livro de José Lins do Rego- “Histórias da velha Totônia”. Se a infância de José Lins do Rego não foi um paraíso, quando a velhinha aparecia no engenho e reunia os meninos no terraço da casa grande para contar histórias de animais sabidos, de príncipes, princesas e de reinos encantados, o menino ouvia essas histórias e se transportava para um mundo paradisíaco.

            A primeira história do livro de contos infantis de José Lins do Rego é “O macaco mágico”, uma versão do famoso conto de Perrault –” O gato de botas”. Esse conto aparece no livro “Contos populares do Brasil”, de Sílvio Romero, com a denominação de “O Doutor Botelho”. O folclorista Sílvio Romero afirma que “Doutor Botelho” é uma variante do Gato de botas, um conto registrado por Perrault, mas que existe também uma versão semelhante na África.

            Poetas populares, contistas, autores de livros infantis têm se debruçado sobre esse conto muito antigo e recriam versões que atraem leitores de todas as idades.  Ieda de Oliveira aproveitou a história do gato de botas e escreveu uma fábula moderna em que o gato bonzinho dos contos tradicionais passa a ser um vilão que gostava de devorar passarinhos. Com o título “As aventuras do Gato Marquês” (Ed. Globinho, 2014), ilustrações de Lúcia Brandão, vamos acompanhar a trajetória desse gato bem ladino.

Na história recriada por Ieda Oliveira, o gato e o passarinho se tornam amigos graças à astúcia de uma experiente coruja. Até o cachorro Rulfo, arredio a gatos, foi convencido pelo passarinho Mel que todos poderiam ser amigos.

O título do livro lembra a história do Gato de Botas e há referências ao famoso conto de Perrault, mas este conto/fábula passa por muitas transformações.  O Gato Marquês era metido a bonitão e se dizia neto do famoso Gato de Botas, era tudo invenção, o que ele gostava mesmo era de caçar e devorar passarinhos. Melro, chamado por todos de Mel, estava em perigo. O que fazer para salvar Mel das garras do famigerado gato? 

O gato manhoso e cheio de astúcias convidou o passarinho para dormir em sua casa, lá ele teria um abrigo seguro. A coruja que gostava muito do passarinho, acompanhou-o até à casa do gato. Depois de muita conversa jogada fora, o gato disse a coruja que já era tarde e todos precisavam dormir. A coruja se despediu do passarinho e do gato e chamou este para um particular – revelou que passara um veneno nas penas do passarinho e se o gato tentasse comê-lo morreria envenenado.  O gato passou uma noite horrível, estava faminto e não podia comer o passarinho.

Cada dia que se passava o gato ficava mais esfomeado e nada de comida, o passarinho ofereceu - lhe minhocas, insetos, mas o gato não queria saber dessas porcarias, sonhava em comer passarinhos e Mel inocente de nada desconfiava. 

Um dia, o passarinho convidou o gato para dar um passeio, quem sabe se ele não iria encontrar a comida desejada. Juntos empreenderam uma longa viagem à procura de alimento para o gato. E chegaram até à casa de uma menina muito boazinha que gostava de toda espécie de animais – passarinho, gato, cachorro. A essa altura, o gato e o passarinho já conviviam pacificamente. 

Interessante observar as ilustrações de Lúcia Brandão. A ilustradora representou, inicialmente, o gato com um olhar espantado, cheio de maldade,   à medida que o gato vai se transformando de mau para bondoso, o olhar vai se modificando,  passa a ter um olhar mais tranquilo, até o chapéu, que lhe dava ares do gato de botas, desaparece.
   
Esta divertida fábula procura mostrar o valor do diálogo e dá lições de tolerância.   O valor de uma amizade sincera é capaz de superar as diferenças.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Patrick Modiano e a literatura infantil



Patrick Modiano e a literatura infantil
(Neide Medeiros Santos – Leitora votante FNLIJ/PB) 


Permanecemos sempre os mesmos, e aqueles que fomos no passado continuam a viver até o final dos tempos.
(Patrick Modiano. Filomena Firmeza).

Patrick Modiano, escritor francês, nascido em Boulogne – Billancourt, comuna francesa situada nos arredores de Paris, foi o vencedor do Nobel de Literatura 2014. No meio literário já conquistou vários prêmios, entre eles o Grand Prix de Romance da Academia Francesa. Para o público infantil, escreveu “Filomena Firmeza” (Cosac Naify, 2014), com ilustrações de Sempé e traduzido para o português por Flávia Varella.
            Em seus livros, notadamente nos ficcionais, Modiano deixa transparecer fragmentos biográficos e históricos com o predomínio de temas que partem em busca da identidade, da incompreensão diante dos problemas sociais, da ocupação alemã na França. A figura do pai é constante em seus textos.
            O ilustrador Sempé, um mestre do cartum, é natural de Bordeaux, França.  Na escola era considerado displicente e muito distraído, estava sempre com um lápis na mão desenhando. Depois de várias tentativas de emprego, resolveu dedicar-se ao desenho e encontrou seu verdadeiro caminho. Para ilustrar “Filomena Firmeza”, Sempé desenhou Paris, com destaque para os locais frequentados por Filomena e seu pai, e apresentou alguns detalhes da cidade de Nova York.  
O livro de Patrick Modiano, além de proporcionar ao leitor um passeio pelas ruas e bairros de Paris, apresenta cenas da vida cotidiana desta cidade nos anos 1940, o convívio familiar entre um pai e sua filha. No que se refere à estrutura do livro, tudo é apresentado sob o olhar de um narrador autodiegético, um narrador de 1ª pessoa. A história é contada em dois tempos por Filomena  (menina em Paris e adulta em Nova York).  
O início do livro retrata o momento presente – Filomena está em Nova York e comenta que há neve na cidade, isso ela divisa da janela do seu apartamento situado na Rua 59. No capítulo seguinte, através da técnica do flashback, pai e filha estão em Paris, há um retorno de trinta anos.
 Vamos examinar, inicialmente, o espaço geográfico em que viviam o Sr. Georges e sua filha.
Filomena morava com o pai em Paris, sua mãe era uma bailarina americana, morou algum tempo em Paris, mas voltara para Nova York e continuava seu trabalho artístico. Escrevia regularmente cartas para o marido e a filha e esperava que eles viajassem um dia para Nova York para ficarem todos juntos.
O pai de Filomena, Sr. Georges Firmeza, era sócio da loja – “CASTERADE& FIRMEZA – Exp. Trans.”, situada na Rua d´Hauteville, nas proximidades da Gare du Nord.   O que significava Exp. Trans? O pai sempre foi evasivo quando Filomena perguntava o que queria dizer Exp. Trans.  Seria Expedições? Exportações? Trânsito? Transportes? O trabalho na loja era feito sempre à noite. Caminhões paravam em frente ao estabelecimento comercial e empregados conduziam caixas e mais caixas de mercadorias que eram guardadas nesse local.  Um dia a menina encontrou um caderno de registros com essas anotações: rádio, camisas, parafusos, calçados militares, geladeiras, furadeiras, motores elétricos e outros itens bem diversificados. Diante da insistência da filha para saber em que o pai trabalhava, ouviu esta explicação:  “Digamos que trabalho com pacotes”. (p. 26)
A escola que Filomena estudava ficava na Rua  “Petits Hôtels” e o pai acompanhava a menina no trajeto para a escola. Tudo girava em torno do 10º. “arrondissement” – trabalho do pai, escola de Filomena, estações de trem – Gare du Nord e Gare de L´Est, igreja Saint-Vincent–de-Paul.      
O Sr. Raymond Casterade era sócio de Firmeza na firma e a descrição que a personagem narradora faz do sócio do pai não é muito lisonjeira: “era um homem moreno, de olhos escuros e tronco muito comprido”, formado em letras,  gostava de dar lições de moral a torto e a direito, implicava com os descuidos gramaticais de Filomena. Dizia-se poeta e recitavas versos de sua autoria bem como poemas de outros poetas franceses. Versos e poemas enfadonhos.  
Mas, além de estudar, que outras coisas  Filomena fazia?
Frequentava uma escola de dança, certamente tinha pretensões de ser bailarina como a mãe.  A escola ficava na Rua Maubeuge e a professora era a  senhora  Galina Dismailova que mantinha um sotaque russo bem forte . É nessa escola de dança que Filomena conhece Odile, uma menina muito rica que convida Filomena e Sr. Georges para um coquetel de primavera. A festa seria realizada em sua própria casa. No dia marcado, pai e filha compareceram à festa, o ambiente era requintado e o Sr. Georges sentiu-se um pouco deslocado.  Filomena, talvez por ser criança, estranhou apenas a pouca atenção que os anfitriões deram a seu pai, estava muito feliz ao lado da amiga Odile. É nesse coquetel que Georges conhece René Tabélion, o único convidado que conversou com Sr. Georges Firmeza.  Desse encontro com Tabélion, surge a oportunidade do regresso  para Nova York.
O último capítulo do livro é um retorno ao presente. Filomena, acompanhada da filha, visita seus pais que moram no bairro de Greenwich Village. Enfim, agora estão todos juntos em Nova York.
O Sr Georges continua com “negociatas”. Antes, em Paris, agora, em Nova York.  Esse aspecto não fica bem esclarecido.  Pouco importa.  A vida continua e a história termina por aqui.
(Nota: Este texto vai para Célia Carvalho).