sábado, 16 de agosto de 2014

A memória afetiva de Orie



 A MEMÓRIA AFETIVA DE ORIE  
(Neide Medeiros Santos – Leitora votante FNLIJ/PB)

O longo som
            do rio
            frio.

            O frio
            bom
            do longo rio.

            Tão longe,
            tão bom,
            tão frio.
            (Cecília Meireles. Rio na sombra).


            Da editora Pequena Zahar, recebemos o bonito livro “Orie” (2014), texto e ilustração de Lúcia Hiratsuka. Dessa autora já conhecíamos outros livros, entre eles o premiadíssimo “Histórias tecidas em seda” (Ed. Cortez, 2007), que foi lançado em João Pessoa durante Feira Japonesa no Espaço Cultural em 2008.
            Lúcia Hiratsuka é neta de japoneses que vieram para o Brasil nas primeiras décadas do século XX. Ao chegar ao Brasil, a família foi morar no sítio “Asahi”, interior de São Paulo. “Asahi” significa “sol da manhã”. Foi nesse sítio que Lúcia nasceu.  Quando contava dez anos, a família se mudou para Duartina, considerada a “capital da seda”. Mais tarde, transferiu-se para São Paulo onde Lúcia  estudou Belas Artes.
            Em 1988, viajou para o Japão. Durante um ano fez curso de aperfeiçoamento em ilustração de livros infantis na Universidade de Fukuoka. Atualmente, além de escritora e ilustradora,  é professora de Artes, na cidade de São Paulo.   
            No site da escritora, ela explica como aprendeu a ler. O avô foi seu primeiro professor. Os livros que havia na casa eram, em sua maioria, escritos em japonês, havia também alguns “ehons” (livros com ilustração) e foi a partir desses livros que nasceu o desejo de escrever e ilustrar.     
 Além desse avô, professor das primeiras letras, há um destaque especial para a figura da avó, uma excelente contadora de histórias reais e ficcionais. Certa vez, Lúcia perguntou à avó se ela gostaria de retornar ao Japão e ouviu esse depoimento:
Acho que não vou reconhecer mais o lugar que eu nasci, fica na minha memória, continua do jeitinho que eu nasci. Será um eterno furusato.  Furusato é terra natal em japonês.     
            “Orie”, título do livro, é o nome da avó.   O livro se reporta ao dia a dia de Orie e aos acontecimentos narrados por essa avó querida que povoou a infância da neta com narrativas de contos fantásticos, não faltando fatos ligados à cultura japonesa e à vida dos seus familiares.
            A história se passa no Japão no tempo em que os barqueiros camponeses  navegavam pelos rios para vender as mercadorias nas cidades. E a viagem de barco era marcada por surpresas e alegrias, principalmente para uma menininha que estava descobrindo o mundo.
            Neste livro, o barco tem a força simbólica de um ninho aconchegante. Isso está explícito no próprio texto:
            “O barco parecia um ninho. Pai, mãe, Orie que nem passarinho”.
            “O tempo passa, passa e passa...” a menina cresce, seus passos crescem também, Orie se torna uma mocinha e uma nova vida a espera.  A memória afetiva de Orie  remete a um lugar repleto de carinho e de aconchego, e o rio tão frio, tão bom, sombrio, ficou para longe, ficou no país distante, no país do sol nascente. 
            Um rio, sempre um rio acompanha a vida dos habitantes de pequenas e de grandes cidades. Por mais insignificantes que sejam os rios têm suas histórias, seus encantos, está presente na lírica dos poetas e de escritores de nações distintas e de várias épocas.
Em que parte do Japão estaria situado o rio que os pais de Orie navegavam? Não importa. Era um rio como outro qualquer, mas que deixou profundas marcas na menina que via no rio um lugar do sonho e do devaneio. O rio japonês de Orie não é o mesmo do poema de  Cecília Meireles, mas os dois guardam afinidades poéticas.
            Os livros de Lúcia Hiratsuka trazem a marca da simplicidade e se caracterizam por grande beleza literária.  E vem esta explicação: “A prática do sumiê e do haicai me levaram a buscar o simples e o essencial”.
            E foi com a avó que viveu 104 anos que a escritora aprendeu que “furusato” é onde a gente nasce, mas também é o lugar aonde vamos em pensamento, quando estamos tristes ou felizes. Hoje, ela tenta recriá-lo através dos desenhos e das palavras como neste bonito livro cheio de sutilezas e de elementos simbólicos.
            ( Texto publicado no jornal “Contraponto”. Paraíba, 15 a 21 de agosto de 2014).