sábado, 15 de outubro de 2011

O LENHADOR no Museu da Língua Portuguesa


O LENHADOR no Museu da Língua Portuguesa
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)
Catullo não morreu: luarizou-se...
(Mário Quintana. Um Epitáfio para Catullo da Paixão Cearense)
Francisco Marques (Chico dos Bonecos) “poeta, contista e desenrolador de brincadeiras” lançou, no dia 8 de outubro, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, o livro” O Lenhador” (Editora Peirópolis, 2011), com ilustrações de Manu Maltez.
O autor do poema, Catullo da Paixão Cearense, nasceu no dia 8 de outubro de 1863, em São Luís do Maranhão. Aos dez anos, foi morar no sertão do Ceará e aos dezessete se mudou com os pais para o Rio de Janeiro, ali se fixando definitivamente. O sobrenome Paixão Cearense não adveio de ter morado no Ceará, é uma herança paterna, seu pai se chamava Amâncio José Paixão Cearense. Inicialmente, Catullo sentiu-se atraído pela música, começou tocando flauta, mas logo se voltou para o violão que se tornou um amigo inseparável. Seus poemas são muito musicais e se prestam para leitura em voz alta, como fez Francisco Marques no Museu da Língua Portuguesa.
“O lenhador” é considerado um texto ecológico, integra o primeiro livro publicado por Catullo – “Meu Sertão”. A respeito desse poema, Mário de Andrade assim se expressou: “O poema é digno do espantoso inventor de metáforas e com uma temática espantosamente contemporânea para um poema de 1918”.
Muito anos depois, Manoel de Barros que muito entende da natureza, das árvores e dos passarinhos, saudou o poeta com estas palavras:
“Oi Catullo! Sabemos pouco ou quase nada sobre o coração das árvores. Eu, de minha parte, só penso em desver este mundo tão malvado com a natureza. Mas para desver este mundo precisei inventar outro”.
Catullo, como Manoel de Barros, inventou outro mundo. No poema “O Lenhador,” a oralidade e o tom teatral são elementos marcantes – é como se o coração do narrador estivesse sangrando de dor diante do machado insensato. Catullo é, também, autor da canção “Luar do sertão”, considerado “o hino nacional do coração brasileiro”.
Há duas versões do poema “O lenhador”. A primeira traz a data de 1918 e foi escrita em linguagem matuta, a segunda é de 1921, a linguagem é mais erudita. Preferimos a versão de 1918, é espontânea e a linguagem mais saborosa.
Um registro da primeira estrofe dos poemas comprova o que afirmamos:
Um lenhado derribava
as árvre, sem precisão,
e sempre a vó li dizia:
“ Meu fio: tem dó das árvre,
que as árvre tem coração!”(1918)
.....................................................
Um lenhador derribava,
à toa, sem precisão,
tudo quanto ele encontrava
que fosse vegetação.

A sua pobre avozinha,
toda a noite e todo o dia,
(mas sempre falando em vão...)
sem se cansar lhe dizia:

“Meu filho.. Tem compaixão!
Respeita a imagem das árvores,
porque elas têm coração.” (1921)

O neto parecia indiferente aos conselhos da avó, desmatava, queimava as árvores, nada escapava do machado do lenhador: ipês cheiinhos de flores eram derrubados, nem uma velha laranjeira que tinha fornecido as flores para o casamento da avó foi poupada, ficou toda desgalhada. E a avozinha sempre repetindo: “Meu fio: tem dó das árvre,/ que as árvre tem coração!”
Um dia, quando “o tinhoso” derrubava um grande ipê, viu o sangue jorrando do tronco, assombrou-se e fugiu correndo. Foi perseguindo por todas aquelas árvores que tinha derrubado. O poema “O Lenhador” merece ser lido, decorado por inteiro e declamado para a família, para os amigos, “para a irmãzinha natureza...”
Não poderia deixar de fazer referências às belas ilustrações de Manu Maltez. A economia das cores – apenas o cinza e o vermelho – denuncia, respectivamente, a morte das árvores e as feridas abertas pelo machado impiedoso do lenhador.
Alberto Manguel, no livro “Diário de Lecturas”, afirma que há livros que lemos com reverência, com respeito, livros que ficam gravados na nossa memória. “O lenhador” é um desses livros.
Quer saber mais sobre este livro, sobre a vida de Catullo, sobre o que disseram os biógrafos? Leia-o.

Suas mais famosas composições são Luar do Sertão (em parceria com João Pernambuco), de 1908, que na opinião de Pedro Lessa é o hino nacional do sertanejo brasileiro, e Flor amorosa, composta juntamente com Joaquim Calado em 1867. Também é o responsável pela reabilitação do violão nos salões da alta sociedade carioca e pela reforma da ´modinha´.




terça-feira, 4 de outubro de 2011

SER ÍNDIO: UMA ATITUDE DE CORAGEM E SUPERAÇÃO


SER ÍNDIO: UMA ATITUDE DE CORAGEM E SUPERAÇÃO
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)

Ao escrever, dou conta da minha ancestralidade,
do caminho de volta,
do meu lugar no mundo.
(Graça Graúna)

O escritor Daniel Munduruku esteve em João Pessoa e participou do II Seminário de Leitura na Rede (15 e 16 de setembro de 2011), realizado no auditório da Federação das Indústrias (SESI). De forma descontraída, o professor/filósofo dialogou com professores e mediadores de leitura e explicou o que ser índio no Brasil atual.
Filho da nação Munduruku, natural de Belém do Pará, Daniel Monteiro Costa adotou o sobrenome de Munduruku em homenagem a seu povo. Na conversa com o público, relatou que quando era criança tinha vergonha de ser índio. Na escola, os colegas diziam que índio era habitante da selva, da mata, e que se parecia com os animais. O menino ouvia essas histórias, sofria, e não podia negar sua origem – tinha cara de índio, cabelo de índio e pele de índio, chegou a desejar não ter nascido índio.
Mas, sempre existe um mas nas histórias, quer sejam reais, quer sejam fictícias, apareceu o avô que procurou mostrar ao menino Daniel a beleza e a riqueza dos povos indígenas e o que esse povos representavam para a sociedade brasileira. Hoje reconhece que o avô tinha razão. Quando deixou a aldeia e foi estudar e morar em São Paulo assumiu o compromisso de divulgar o modo de ser e de fazer dos índios brasileiros. E vem cumprindo muito bem a promessa.
Os inúmeros livros que já publicou sobre a cultura, os mitos, as histórias indígenas, as palestras que tem proferido em seminários, congressos, encontros de literatura infantil, feiras de livros, tudo atesta o trabalho de um escritor verdadeiramente comprometido com seu povo.
O livro “Coisas de Índio”, versão infantil e adulto (Ed. Callis), oferece um amplo panorama sobre as comunidades indígenas do Brasil. Com este título –” Coisas de índio “-, o escritor procurou minimizar o valor negativo da expressão e trazer o rico universo indígena para conhecimento das crianças e dos adultos.
Em 2011, Daniel Munduruku publicou “Coisas de onça” (Ed. Mercuryo Jovem), com ilustrações de Ciça Fittipaldi.
O escritor é graduado em Filosofia e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Escreveu mais de 40 livros para crianças e jovens, conquistou vários prêmios no Brasil e no exterior. Mora em Lorena, interior de São Paulo, e desenvolve um trabalho com escritores indígenas com o objetivo de difundir a literatura produzida por esses povos.
Ciça Fittipaldi é artista plástica, formada em Arquitetura e Urbanismo e dedicou-se à Antropologia. É professora de Artes da Universidade Federal de Goiás. Seu compromisso com a literatura indígena adveio de uma rica experiência que teve nos anos 1990 quando viveu entre os índios Nhambiquara. A coleção Morena (Ed. Melhoramentos), textos e ilustrações de Ciça Fittipaldi, é um conjunto de livros que aborda os mitos mais representativos dos índios.
“Coisas de onça” reúne três histórias de onça contadas pelo velho pajé Bijau e pela velha Kulahã. Nas aldeias, é costume os velhos contarem histórias para os mais novos, eles são considerados os “guardiões da memória”.
“A onça e o coelho esperto” é uma variante de “O Bicho Folharal”, conto recolhido por Gustavo Barroso e registrado por Câmara Cascudo em “Contos Tradicionais do Brasil”. No conto de Gustavo Barroso, o espertinho da história é a onça que engana a raposa. No conto indígena, o coelho consegue enganar a onça, mas o artifício usado pelos animais (onça e coelho) é quase o mesmo, lambuza-se de mel de abelhas e conseguem ludibriar o inimigo.
Kulahã contou a história de “A onça e a raposa”. Esta é a mesma versão de “O Bicho Folharal”, até os animais protagonistas são os mesmos – a onça e a raposa.
O terceiro conto “A onça e o veado” conta como esses dois animais construíram uma casa. O veado limpa o terreno para construir sua casa. No outro dia, quando volta para dar continuidade ao trabalho, encontra forquilhas e paus amarrando a casa e assim sucessivamente. Todo dia alguém colocava mais alguma coisa e o veado atribuiu o fato a Tupã. Só quando terminou a construção, o veado descobriu que tinha sido a onça que o havia ajudado e o jeito foi conviver com este animal que não merecia muita confiança, mas chegou um momento que o medo dominou e não foi mais possível a convivência. Resultado: abandonaram a casa.
Para escrever estas histórias, Daniel Munduruku fez pesquisas nos “Contos Populares” de Sílvio Romero, nas “Lendas de árvores e de plantas” de Altimar Pimentel e em outros livros que contam histórias da literatura oral e popular.
“Bem poucas palavras” é o texto introdutório do livro e Daniel Munduruku termina suas palavras com este pedido que transcrevemos:
“Aqui fica registrado meu pedido a todos os leitores que, ao tomar contato com este texto, elevem seu pensamento ao Criador, agradecendo pela sabedoria que estes antepassados deixaram escrita na memória da gente brasileira”.
Os livros “Coisas de índio”, nas duas versões – criança e adulto, podem ser encontrados na livraria Esquina das Letras.

Moçambique: um país tão longe e tão perto


Moçambique: um país tão longe e tão perto
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)

escrevo mediterrâneo
na serena voz do Índico.
(Mia Couto. Poema Mestiço)

Moçambique fica na costa oriental da África Austral, do outro lado do continente africano, e integra o grupo de países de língua portuguesa. Conseguiu a independência política de Portugal em 1975 depois de muitas lutas, tornando-se uma república multipartidária. É sobre este país, sua gente, suas histórias, que o escritor Júlio Emílio Braz escreveu “Moçambique” (Ed. Moderna, 2011).
O livro se compõe de textos adaptados e recontados por Antônio César Gomes Sobreira, pesquisados nos seus cadernos de viagens e diários. Gomes Sobreira nasceu em Portugal, em 13 de abril de 1915. Saiu de Portugal com um ano de idade, acompanhou os pais e permaneceu por quatro anos na colônia portuguesa de Moçambique. O pai era engenheiro e foi trabalhar naquele país. Com apenas dois meses de permanência em Cazula, uma aldeia do alto Zambeze, a mãe faleceu de causa desconhecida. Quatro anos depois, o pai resolveu enviar o filho para Portugal para a casa de um tio materno, aí foi criado e educado. Estudou na Universidade de Coimbra e se tornou um proeminente escritor e lingüista, só retornou a Moçambique depois de adulto. Faleceu em 14 de agosto de 2007, na cidade de Nampula.
Na apresentação do livro, Júlio Emílio Braz explica que o interesse pela África começou quando lançou os olhos para aquele continente à procura de suas próprias origens. No processo de auto-descobrimento, se voltou para os países que apresentam identidades étnicas e culturais com o Brasil, como Cabo Verde, Guiné Bissau, Angola, Timor Leste, este último em plena Ásia, e Moçambique.
Vamos começar nossa viagem pelas histórias e contos moçambicanos, utilizando-se dos escritos do escritor, professor, folclorista e lingüista Antônio César Gomes Sobreira. Foram compiladas dezessete histórias. Nas Notas Finais do livro, o leitor encontra a biografia de Antônio César Gomes Sobreira, Bibliografia, O que é Moçambique? Dados sobre o autor e a obra.
A maioria dos contos é apresentada em prosa, mas encontramos um poema – “O filho desobediente” e uma peça teatral infantil, adaptada de um conto chuabo – “O coelho e a festa dos animais com chifres”.
O poema foi coletado num hospital de Nhamatanda durante a guerra civil, em meados de 1981, e publicado no livro “Gorongosa – Poemas para crianças inteligentes, de Antônio Sobreira, Livros da Nação. Sofala. Moçambique, 1994.” É um poema narrativo e conta a história de uma mulher que não tinha filhos. Aí a mulher teve uma ideia – resolveu criar um menino com pedaços de madeira e barro. Depois que terminou o trabalho, pediu-lhe que não brincasse longe de casa. A criança cresceu e começou a se aventurar e sair para mais distante. Veio a chuva e começou a dissolver o menino. A mãe ainda conseguiu salvá-lo nas primeiras vezes e reconstituí-lo, mas como as fugas aconteciam com freqüência um dia não foi possível refazer o filho querido que se desmanchou para sempre.
“O coelho e a festa dos animais com chifres” é uma peça adaptada de um conto chuabo. Em nota de rodapé, vem esta explicação: “Povo chuabo – concentra-se no centro sul da província de Zambezia, Moçambique, até a fronteira com o Maluí. O nome Chuabo significa “povo forte”, pois esse grupo ocupa as imediações do que foram os principais fortes portugueses no período da colonização.” (p.61)
A peça teatral envolve uma festa na floresta na qual só podia participar animais com chifres. O coelho resolve participar da festa e arranja uns chifres colocando-os na local das orelhas. A coelha, sua mulher, insiste para que não use esse artifício, pois poderia ser descoberto. Mas o coelho é insistente e não atende ao pedido. Vai à festa, bebe, dança e brinca com todos, mas no fim é desmascarado pelos animais chifrudos e recebe uma boa sova. Essa peça/conto apresenta afinidades com o texto popular “A festa no céu”, muito difundido no Brasil.
Os outros contos têm como protagonistas macacos mentirosos, amigos desleais, um gato corajoso e uma moça que nunca fala. Cada conto vem de uma região diferente de Moçambique. As notas de rodapé indicam o título do livro do professor Gomes Sobreira de onde foram retiradas as histórias.
O livro é dedicado à irmã Maria Jacinta de Souza, freira de uma congregação religiosa com sede em Maputo. Ela prestou uma inestimável ajuda a Júlio Emílio Braz na produção deste livro.
O escritor brasileiro costuma se apresentar nos colégios e contar histórias para as crianças. Em uma das visitas que fez a São Paulo, esteve em um colégio de freiras e soube que a congregação possuía um colégio na cidade de Maputo. As conversas com as freiras levaram-no a entrar em contato com a irmã Maria Jacinta de Souza, diretora do colégio de Maputo, que lhe enviou um rico material com lendas e mitos naturais de Moçambique.
Durante as explicações dadas pelo autor, encontramos inúmeras referências ao poeta Fernando Pessoa. Nas palavras que encerram o livro, aparece esta pergunta: “Cada um tem o Alberto Caeiro que merece ou pode ter, não é mesmo?” (p. 144)
Antônio César Gomes Sobreira e irmã Maria Jacinta – será que eles existiram mesmo? Somente quando terminei de ler o livro fiquei sabendo o que era real e o que era fantasia. Para desvendar o mistério, é necessário a leitura do livro.