sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Eros e Psiquê: a velha/nova história




Eros e Psiquê: a velha/nova história
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária da FNLIJ/PB)

Conta a lenda que dormia
Uma princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
(Fernando Pessoa. Eros e Psiquê)

A história de Eros e Psiquê está inserida no livro do escritor latino Apuleio: “O Asno de Ouro”. É um relato da Antiguidade latina que trata do amor entre um deus (Eros) e um ser humano (Psiquê).
O jornalista William Costa, na coluna “Almanaque” (O Norte, domingo, 15 de agosto de 2010), com aguda sensibilidade literária, discorreu sobre “Eros e Psiquê” [Ed. FTD, 2009), versão de Ferreira Gullar e fez um bom resumo da história. Não vamos bater na mesma tecla, encaminhamo-nos para outra versão – “Psiquê”, texto e ilustração de Ângela Lago (Ed. Cosac Naify, 2010), dando ênfase à ilustração.
A versão de Ângela Lago chama a atenção do leitor a partir da capa. Capa toda preta perfurada por pequenos pontos de tamanhos diferentes, deixando-se entrever a cor prateada. Em destaque, na cor branca, apenas o título do livro e o nome da autora.
Examinando a capa, a primeira impressão é de uma noite escura iluminada pelas estrelas. No posfácio do livro, Ângela Lago dá a seguinte explicação – quando era pequena, devia ter cerca de quatro anos, viu um céu cheio de estrelas e esta imagem tem acompanhado sua trajetória de ilustradora.
Adélia Prado confessa que ficou cheia de gratidão por estar na quarta capa do livro e ficou imaginando como era possível alguém perfurar um papel de fundo preto e dizer: “é um céu estrelado”! É possível, sim. Antes de ler a explicação de Ângela Lago, ao examinar a capa, tive a sensação de estar no sertão do Seridó em uma noite bem escura com o céu cheio de estrelas. E a noite invade todas as páginas do livro.

Na história de Apuleio, os amantes eram tão bonitos que seria impossível descrevê-los. Ângela Lago procurou ser fiel à informação do autor, os personagens aparecem sempre envoltos em sombra, parecem silhuetas. As feições dos enamorados são indistintas. Acrescente-se que Eros era um deus e não podia ser visto pelos mortais.
Cada ilustração exige um olhar atento do autor. As páginas não vêm numeradas, mas há uma ilustração que merece um destaque especial – a noite vai alta, a lua minguante quase não é divisada, o céu contém algumas estrelas e, através da janela aberta, é possível divisar lençóis sobre uma cama, tudo envolto em azul profundo, confundindo-se com a escuridão da noite.
A cama dos amantes vem representada por diferentes matizes: ora é um campo de flores, ora é o mar ou o céu estrelado.
O vocábulo Psiquê pode ter dois significados: alma e borboleta e as borboletas povoam as páginas do livro. Aparecem em forma de asas, nas costas de Eros; entalhadas nos dourados das portas ou em algum cantinho da ilustração, De forma pequena, discreta, elas se espalham pelas páginas do livro.
Troncos de árvores em tons escuros e manchados e pequenos ramos sombredos contrastam com o amarelo dourado de algumas ilustrações, entre elas as borboletas douradas em tamanhos distintos.
Se a história de Eros e Psiquê é uma brincadeira de ocultar e revelar, a narradora conseguiu atingir esse objetivo. Texto verbal e pictórico brincam de se esconder e o leitor tenta adivinhar o que está oculto.
Para concluir, é válido repetir a epígrafe de abertura do livro:
“Esta história é de encantamento. Traz vida longa e boa sorte a todos que a escutam ou a leiam”.
Com estas palavras, convidamos o leitor a se debruçar sobre este livro, ter uma vida longa, pesquisar sobre mitos, ler o poema de Fernando Pessoa “Eros e Psiquê” na íntegra e ser feliz para sempre.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Ondjaki: expoente da moderna literatura angolana





Ondjaki: expoente da moderna literatura angolana
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária da FNLIJ/PB)

que o céu dançante, vestido de estrelas caintes, possa bailar outra e outra vez, que as crianças aprendam sempre com os pássaros a secreta magia dos gritos azuis.
(Ondjaki. Carta à amiga Ana Paula. Em “AvóDezanove e o segredo do soviético”).

Ondjak, pseudônimo artístico de Ndalu de Almeida, pertence à novíssima geração de escritores de Angola. Na língua umbundu ou quimbundo, Ondjaki significa “guerreiro”, nome apropriado para aquele que se destina a apresentar as lutas do seu povo e coloca a liberdade como uma meta a ser conquistada.
Romancista. poeta, pintor, licenciado em Sociologia pela Universidade de Lisboa, já fez teatro e documentário sobre a cidade de Luanda. É um artista múltiplo e versátil.
Muitos dos seus livros retratam fatos vivenciados na sua infância. “Os da Minha Rua” recebeu o Grande Prêmio de Contos Camilo Castelo Branco 2007. É um relato que tem a sua própria infância como motivo condutor.
Ondjaki procura valorizar os contadores de história e os velhos têm um papel primordial nos seus contos e romances. A figura da avó, presente no primeiro livro infantil “Ynari: a menina das cinco tranças”, (Luanda: Chã de Caxinde, 2002), retorna no romance juvenil “AvóDezanove e o segredo do soviético (Cia Das Letras, 2009). Este livro conquistou o prêmio de Literatura em Língua Portuguesa da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 2010.
No ensaio que escrevemos “A arte de contar histórias” (In: “Guriatã: uma viagem mítica ao país-paraíso”), destacamos o papel do narrador nas histórias infantis, utilizando o texto de Walter Benjamin – “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”.
Há uma passagem no texto de Benjamin em que o autor apresenta dois tipos de narradores: “o marinheiro comerciante e o camponês sedentário”. O provérbio popular “Quem viaja muito tem o que contar” se coaduna com o primeiro grupo de narrador – o narrador marinheiro ou marujo. É alguém que veio de longe, viajou muito, teve experiências diferentes, por isso muito tem o que contar. O narrador representado pelo camponês sedentário é aquele que não saiu de seu país ou de sua região, mas conhece bem suas histórias, lendas, tradições.
No romance juvenil de Ondjaki – “AvóDezanove e o segredo do soviético” (Cia Das Letras, 2009), vamos encontrar a figura de duas avós que são representantes do segundo tipo de narrador apresentado por Walter Benjamin – “camponês sedentário”. AvóCatarina e AvóAgnette, esta última mais conhecida como com AvóDezanove, pouco saem de casa, mas são detentoras de muitos saberes. Elas sabem tudo que se passa na PraiaDoBispo e nos seus arredores e têm muito o que contar.
Depois da independência, Angola recebeu muitos cubanos e soviéticos, eles vieram para ajudar na reconstrução do país. Algumas histórias sobre a vinda dos cubanos e soviéticos surgiram nesse período. O livro de Ondjaki retrata essa fase.
A trama do romance se desenvolve em torno da construção de um mausoléu que vai abrigar o corpo do ex-presidente e líder angolano Agostinho Neto na PraiaDo Bispo, em Luanda.
Meninos, avós, o russo Bilhardov, mais conhecido como Botardov, e o cubano EspumaDoMar são os principais personagens do livro. O apelido Botardov foi motivado pelo falar arrevesado do soviético.
O narrador de ´”AvóDezanove e o segredo do soviético” é um menino. É sob o olhar desse menino que percorremos as páginas do romance. O oficial soviético (Botardov) comanda os “lagostas azuis”, assim eram chamados os soviéticos, ele guarda um segredo sobre a construção do mausoléu.
Existia um segredo a ser desvendado, mas o menino narrador estava mais interessado em saber a cor do grito dos pássaros e a fala dos peixes. As coisas abstratas e possíveis de acontecer eram mais atraentes do que o cotidiano que cercava a vida dos habitantes da PraçaDoBispo.
A liberdade de linguagem, a criação de neologismos e a motivação semântica de certas palavras imprimem um caráter diferenciado na prosa desse escritor angolano. A força da literatura de Ondjaki tem o poder de transformá-lo em um escritor “singular e plural” no cenário das letras de língua portuguesa.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O arminho dorme – um romance histórico


O arminho dorme – um romance histórico
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária da FNLIJ/PB)

Miña terra, miña terra,
terra donde me eu criei,
hortiña que quero tanto,
figueiriñas que prantei.
(Rosalía de Castro. Cantares gallegos)

“O arminho dorme” (Ed. SM, 2009) romance juvenil do escritor galego Xosé A. Neira Cruz, com tradução da professora Nilma Lacerda, ganhou o prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (2010) na categoria Tradução/Adaptação/Jovem.
Xosé A. Neira Cruz nasceu em Santiago de Compostela, cidade que este ano sedia o 32º. Congresso Internacional de IBBY que traz a seguinte temática: “La Forza das Minorias”. É formado em Filologia italiana e Jornalismo. Neira Cruz já escreveu roteiros para televisão e fundou a revista “Fadamorgana”, especializada em literatura infantil e juvenil. É autor de mais de trinta livros para crianças e jovens e recebeu diversos prêmios, entre eles “Barco a Vapor” (1997 e 1999), Merlin (1988 e 2000) e Lazarillo (2004). Atualmente, coordena a Comissão de Desenvolvimento de Projetos da International Board on Books for Young People (IBBY).
“O arminho dorme” foi considerado um dos dez melhores livros juvenis do mundo em 2006, pelo Banco do Livro da Venezuela, ganhou, ainda, o prêmio Raíña Lupa e constou da lista White Ravens, da Biblioteca de Munique. O sucesso do livro extrapolou as fronteiras da Galícia.
Ficamos conhecendo um pouco do autor e do sucesso do livro, vamos entrar no reino da história.

Uma pesquisa histórica envolvendo uma importante família de nobres italianos, assim pode ser definida a trama desse romance de Xosé A. Neira Cruz.
A narrativa começa com a abertura das tumbas da família Médici. Um manuscrito encontrado junto ao corpo de uma jovem vai desencadear o enredo do romance. A partir desse momento, a história é conduzida por esse manuscrito.
A protagonista do romance é jovem Bianca Capello, a dona do manuscrito, ela é filha bastarda do grão-duque Cosimo I, da família Médici, uma família de banqueiros muito rica que, no século XVI, dominou a Itália e transformou Florença a capital da Arte e da Cultura.
Através do manuscrito, uma espécie de diário, acompanhamos a vida da jovem Bianca e ficamos sabendo como foi sua primeira infância, a morte da mãe a sua vinda para o palácio dos Médici, após o reconhecimento da paternidade pelo pai.
A narradora recria o ambiente de Florença do século XVI, os dramas familiares da família Médici, as intrigas palacianas, o luxo e a grandeza desse período.
Bianca se torna uma moça de grande beleza, apaixona-se por Giulio de Camollia, filho mais novo do conde de Camollia e vive um grande amor, mas seu pai, como era costume naquela época, reservou um casamento de conveniência e a jovem recusa aceitar o noivo a ela destinado.
Xosé A. Neira Cruz explica que deve a gênese desse romance a contemplação de um óleo de Bronzino, pintor italiano das famílias palacianas da Itália, que retratou Bia de Médici (Bianca). Este retrato se encontra na Sala della Tribuna da Galeria della Uffizi (Florença). Uma troca de olhares entre a mulher retratada e o romancista deu início a tudo. Esta é a explicação que o autor dá aos leitores. Ficção e história caminham pari-passu.
Não devemos esquecer que o autor é estudioso da história italiana e fez muitas pesquisas para escrever esse romance que encanta pela poeticidade do texto. A lista de agradecimentos que se encontra nas últimas páginas do livro demonstra o teor da reconstituição da história.
Xosé A. Neira Cruz nasceu na mesma cidade de Rosalía de Castro – Santiago de Compostela. Rosalía de Castro é considerada a grande divulgadora da língua galega. O dia 17 de maio, data da publicação de “Cantares Gallegos” (Rosalía de Castro), é considerado o Dia das Letras Galegas.
A língua galega está muito próxima do português. Na formação dos dois povos – o galego e o português – existia uma unidade lingüística, era o galaico-português.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

O lúdico na poesia de Águia Mendes e Eloí Bocheco















O lúdico na poesia de Águia Mendes e Eloí Bocheco
(Neide Medeiros Santos – Critica literária- FNLIJ/PB)

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
(José Paulo Paes. Convite. In: Poemas para brincar)

Se fizermos uma retrospectiva da poesia infantil brasileira nos últimos trinta anos, iremos encontrar um bom número de poetas voltados para o lúdico. Nesta nova linha, destacamos José Paulo Paes e, mais recentemente, Manoel de Barros. A respeito desses dois poetas, há um fato curioso que merece ser registrado – José Paulo Paes e Manoel de Barros só começaram a escrever para crianças na maturidade. Estavam, portanto, como disse certa vez Manoel Bandeira, amadurecidos para a vida e para a poesia.
“Poemas para brincar”, de José Paulo Paes, na acepção da professora Regina Zilberman “Como e por que ler a literatura infantil” (Objetiva: 2005): ”...talvez seja o texto que melhor esclarece o que significa escrever para crianças e esperar que o leitor aprecie, pois o escritor estabelece uma conexão entre brincar e escrever.” (p.129)
Manoel de Barros começou a escrever livros para crianças em 1999. O primeiro foi “Exercícios de ser criança” (Ed. Salamandra), depois vieram muitos outros. É um poeta que trabalha cada letra, cada sílaba, cada palavra, procurando dar harmonia ao texto. Nos seus poemas afloram sentimentos inerentes ao leitor infantil. Passarinhos e outros pequenos animais têm voz.
A poesia lúdica de Paes e Manoel de Barros foi bem assimilada por poetas mais novos. A trilha de poetar com ludicidade encontra boa receptividade no paraibano Águia Mendes – “O boi pastando nas nuvens” (Ed. Ideia, 2010) e na catarinense Eloí Bocheco –” Pomar de brinquedo” (Ed. Larousse Jovem, 2009).
O título do livro de Águia Mendes já nos transporta para o mundo onírico, da fantasia, dando-nos a impressão de que estamos diante de quadros de Marc Chagall.
Quando abrimos o livro e começamos a ler os poemas, sentimos que o poeta está mesmo disposto a brincar com as palavras. A brincadeira se evidencia nas repetições, no jogo de palavras, no inusitado de certas imagens. Vejamos este exemplo:
A escova de dente
da boca
é o pente

escova cabelo
de dente. (p.15)
O ludismo também se faz presente na linguagem visual, como neste poema:
árvores
são aves
de chão
eternamente
pousadas. (p.36)
A ilustração criada por Horiéby Ribeiro apresenta troncos de árvores providos de bicos de passarinhos, olhos de gente e asas de anjo.
Eloí Bocheco transformou “as caras lembranças da infância numa ciranda poética para celebrar o sonho e a fantasia”. Vamos dar um passeio pelo pomar de brinquedo e desfrutar da ludicidade dos poemas.
No poema “Na roda”, o eu-lírico intertextualiza com as cantigas de roda:
O limão entrou na roda
não sabia dançar
chamou a tangerina
para ser seu par.
(...)
Assim assim
assim assado
dança o limão
todo requebrado. (p.7)
O processo de associação por semelhança está presente nestes versos que mais parece uma adivinhação:
Por que será que
a fruta do conde
tem rugas?
Quem saber contar
é a tartaruga. (p.11)
Eloí Bocheco é pesquisadora do folclore brasileiro e da poesia popular, daí seu gosto pelas quadrinhas populares como neste exemplo:
De pertinho, as amoras
são uvas em miniatura.
Bote os cachinhos na mão
e veja se são ou não são! (p.27)
Os poemas apresentados demonstram que estamos diante de dois poetas comprometidos com o lúdico que sabem fazer “peraltagens” com as palavras e cantar antigas cantigas de roda.
Para caracterizar o menino/poeta Águia Mendes, escolhemos esses versos de Manoel de Barros:
O menino aprendeu a usar as palavras
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras
E começou a fazer peraltagens. (Exercícios de ser criança)
Eloí Bocheco condiz com os versos de Cecília Meireles:
Chegaremos de mãos dadas
cantando canções de roda.
E então nossa vida toda
será das coisas amadas. (Cançãozinha para Tagore)