sábado, 11 de abril de 2009

Dom Quixote: o cavaleiro do sonho




Dom Quixote: o cavaleiro do sonho
Por: NEIDE MEDEIROS SANTOS

Ana Maria Machado, no livro Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, relata seu primeiro encontro com Dom Quixote. Esse primeiro encontro não foi com o livro de Cervantes, mas com uma pequena escultura de bronze esverdeada e pesada, pousada na escrivaninha do pai, representando Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança. Quixote, magrelo e tristonho, com uma lança na mão e escudo na outra, montado em um cavalo esquelético; Sancho Pança, gorducho e risonho, montado em um jumento, de braço estendido para o alto, erguia o chapéu e parecia muito contente.

Um dia, a menina curiosa e esperta, perguntou ao pai quem eram aquelas figuras, onde eles moravam. O pai explicou que eles moravam longe, na Espanha e também bem pertinho, dentro de um livro; levantou-se foi até à estante, mostrou o livro “grandalhão” e prometeu que outra hora iria contar a história que estava guardada no livro. A promessa foi cumprida e o pai foi contando, com suas próprias palavras, as aventuras e desventuras de Dom Quixote enquanto mostrava as ilustrações do livro. (1)
Na fase em que já sabia ler, ocorreu o segundo encontro com o cavaleiro da triste figura – Dom Quixote das crianças, uma adaptação de Monteiro Lobato. Lobato, através da voz de Dona Benta, resolve contar, à sua maneira, a história de Dom Quixote aos meninos do sítio do Picapau Amarelo, eliminando os torneios fraseológicos e tornando o vocabulário mais acessível às crianças.
Emília é o personagem que mais se identifica com Dom Quixote e, fascinada pelas maluquices do herói, a boneca começa a dar demonstrações de loucura: veste-se de cavaleiro andante, monta-se em Rabicó, dizendo que este é Rocinante, transforma o Visconde de Sabugosa em Sancho Pança e tenta espetar todo mundo com uma lança. Apavorado com a doidice de Emília, Pedrinho propõe colocar a boneca em uma gaiola como o padre fez com Dom Quixote que, por ser considerado louco, é levado de volta para a casa enjaulado em um carro de bois. Dona Benta, a princípio, concorda com a idéia do neto e sugere a tia Nastácia que coloque a boneca dentro da gaiola do sabiá que havia morrido, mas logo se arrepende desse método tradicional de tratarem os loucos e manda que Emília seja libertada.
No último capítulo, no finalzinho da história, Emília não aceita a idéia da morte de Dom Quixote. A respeito da opinião de Emília, a estudiosa da obra de Lobato, Marisa Lajolo (2) afirma:
Ao final do livro, Monteiro Lobato presta a maior homenagem que um leitor pode prestar a um escritor, e que se torna maior quando o leitor é um escritor. Emília nega-se a ouvir contar a morte de Dom Quixote. Como morreu, se Dom Quixote é imortal? – pergunta a boneca.
Dessa fase lobatiana, Ana Maria revela um grande apreço pelo personagem de Cervantes. Ela recorda os episódios dos moinhos de vento, os rebanhos de carneiros, Sancho Pança sendo jogado para o alto, dentro de uma manta, como se fosse uma bola de jogar, das surras que o pobre Quixote levava, mas ela lembra, sobretudo, de como torcia por aquele herói que queria consertar o mundo, ajudar os sofredores e defender os oprimidos. Dom Quixote não desanimava nunca, era símbolo da persistência, daquele que lutava até o fim. Enquanto as pessoas achavam que Dom Quixote era maluco, riam dele... , ela sentia profunda admiração pelo personagem sonhador.
Para expressar a identidade da escritora com o personagem Dom Quixote, transcrevemos este excerto:
(...) E então as pessoas achavam que Dom Quixote era maluco, riam dele...
Eu não ria. Metade de mim queria avisar ao cavaleiro: “Fique quieto no seu canto, não vá lá, não, porque não é nada disso que você está pensando...” A outra metade queria ser igual a ele. Até hoje. (3)
Certamente, na trajetória da autora de Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, houve inúmeros encontros com as diversas edições de Dom Quixote de la Mancha, mas, objetivamos, nesse primeiro momento, destacar essas leituras feitas na infância.
Um dia, a menina que gostava de ouvir a história de dom Quixote contada por seu pai e que lia Dom Quixote das crianças cresceu, tornou-se escritora e resolveu recriar a mesma história que acompanhou a sua infância para todas as crianças do Brasil. O ano de 2005 era propício, comemorava-se a o 4º centenário da publicação do livro Dom Quixote de la Mancha. Para marcar essa data, surgiram, no Brasil, muitas reedições, traduções, adaptações para o público infanto-juvenil e Ana Maria Machado escreveu O Cavaleiro do Sonho. As aventuras e desventuras de Dom Quixote de la Mancha (3), com ilustrações de Cândido Portinari. O livro recebeu o prêmio Fernando Pimentel – O Melhor livro Reconto (Hors Concours) da Fundação Nacional do livro Infantil e Juvenil (2006).
Aqui, como no texto de Lobato, há duas vozes – a voz de Ana Maria que faz a apresentação e a conclusão do livro e a voz da narradora que conta e recria o mundo sonhado por Dom Quixote. O texto começa com o tradicional Era uma vez... e continua... um homem que sonhava.
Na apresentação, Ana Maria Machado destaca três tipos de sonhadores: aqueles que sonham com uma vida melhor para os outros e para todo mundo; os que acreditam no sonho e resolvem se esforçar para que ele aconteça e, por último, aqueles que estão dispostos a arriscar a sua própria vida em benefício dos outros. É difícil encontrar pessoas sonhadoras dispostas a fazer sacrifícios pelo bem da humanidade, mas elas existem, em quantidade bem pequena, é verdade. Dom Quixote aparece como o tipo de herói mais raro – o sonhador, ele era capaz de lutar e arriscar a sua própria vida para melhorar a vida de seus semelhantes.
Quanto à narrativa, começa situando, sem maiores detalhes, o local onde se passam os fatos:
Em um lugar da Espanha, cujo nome ninguém lembra, mas ficava numa região chamada Mancha, há uns quatrocentos anos, vivia um fidalgo empobrecido. (4)
O pequeno leitor situa, geograficamente, o local onde a história se passa – Espanha, na região La Mancha. No final do parágrafo, surge o nome do fidalgo empobrecido – Dom Quixote.
Prosseguindo o relato, há destaque para um bem precioso do fidalgo – livros, ele era dono de uma biblioteca, quase toda de romances de cavalaria e para comprar livros era capaz de vender um campo ou toda colheita. Os livros eram tão importantes para Dom Quixote, ele se empolgava tanto com as leituras dos romances que os personagens que habitavam esses romances lhe pareciam seres vivos, reais.
Nesse primeiro momento da narrativa, há um aspecto que chama atenção do leitor – a valorização do livro.
Dando continuidade à narrativa, vamos encontrar alguns episódios da vida de aventuras e desventuras do Dom Quixote: ser armado cavaleiro, encontrar um escudeiro fiel e uma bela dama inspiradora de um grande amor. Tudo isso foi realizado, um pouco às avessas. O escudeiro era um lavrador, seu vizinho, chamado Sancho Pança, um camponês simplório, analfabeto e pouco inteligente; a bela dama era Aldonça Lourenço, uma robusta camponesa que morava nos arredores de uma pequena aldeia e recebeu o pomposo nome de Dulcinéia del Toboso.
Vestido com uma armadura velha que havia pertencido a seu bisavô, Dom Quixote parte montado em um pangaré, Rocinante, na companhia de Sancho Pança, este escanchado em um burrico, e juntos perseguem ladrões, malfeitores. Um era nobre, tinha lido muitos livros, o outro era lavrador, analfabeto, mas se tornaram muito amigos e criaram, na opinião da narradora, uma das maiores amizades registradas na história da literatura.
Sancho Pança gostava de citar provérbios e, para cada situação conflituosa, sempre proferia uma sentença condizente com o momento vivido. Depois de inúmeras surras e desventuras, Dom Quixote já se apresentava machucado e abatido, isso inspirou Sancho Pança a dar-lhe o cognome de O Cavaleiro da Triste Figura. O fidalgo gostou tanto da nova denominação que resolveu adotá-la como um título nobre.
Depois de passar por muitas aventuras e desventuras, Dom Quixote resolve se recolher à sua aldeia, mas ficou tão triste que adoeceu gravemente. Sentindo que ia morrer, fez um testamento, deixando sua herança para a sobrinha e para Sancho Pança.
A imortalidade de Dom Quixote, apregoada pela boneca Emília, pode ser comprovada pelas inúmeras edições que saem todos os anos do livro de Cervantes. Quixote continua vivo, vivíssimo.
O Cavaleiro do Sonho. As aventuras e desventuras de Dom Quixote de la Mancha, uma bonita adaptação para crianças, veio corroborar a perenidade desse personagem. Além de um bom projeto editorial, o livro conta com belíssimas ilustrações. A galeria de imagens da série Dom Quixote, de Cândido Portinari, que ilustram essa edição, é formada por 14 quadros com desenhos feitos com lápis de cor sobre papel, papelão, grafite e representam vários episódios vivenciados por Dom Quixote e Sancho Pança.
Destaque-se, ainda, a conclusão do livro; voltam à voz de Ana Maria Machado e a explicação porque Portinari no fim de sua vida passou a pintar com lápis de cor: Portinari utilizava a técnica da pintura a óleo e de tanto pintar adoeceu porque as tintas eram tóxicas e começou a usar lápis de cor para externar sua arte. A série Dom Quixote que ilustra esse livro foi dessa última fase do pintor, da época em que estava proibido de usar as tintas a óleo.
Mas... na vida dos seres humanos sempre surgem desafios e apareceu um convite para Portinari pintar dois grandes painéis, representando a Guerra e a Paz, no edifício da ONU, Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque e Candinho, como era carinhosamente chamado pelos mais íntimos, não resistiu à tentação e resolveu voltar a pintar com as tintas que o envenenavam.
Hoje, quem visita a sede da ONU, encontra dois grandes painéis de Portinari simbolizando, respectivamente, a Guerra e a Paz. O pintor faleceu pouco tempo depois de haver concluído os painéis, mas deixou sua marca de amor à arte e seu sonho de lutar por um mundo mais justo e mais fraterno. Como Dom Quixote, Portinari pertence a galeria mais dignificante dos sonhadores – aqueles que sonham em melhorar a vida de seu semelhante, mesmo em prejuízo de usa própria vida.
A conclusão do livro, uma louvação a Quixote e Portinari, não poderia ser mais feliz e, para celebrar a poesia que envolve O Cavaleiro do Sonho. As aventuras e desventuras de Dom Quixote de la Mancha, recorremos a outro grande sonhador, o poeta Mário Quintana:
(...) Uma vida não basta
apenas ser vivida: também
precisa ser sonhada. (5)

O livro Dom Quixote de la Mancha é considerado um dos melhores livros da literatura ocidental de todos os tempos e a recriação de Ana Maria Machado veio enriquecer o universo literário da literatura infantil brasileira.
A edição bem cuidada, a ilustração do livro com quadros de Portinari, o texto literário poético e a pequena biografia de Cervantes, inserida nas últimas páginas do livro, concorrem para que este livro se torne um referencial de consulta para professores, pais, crianças e estudiosos da obra cervantina. Convém ressaltar que é um livro que deixa marcas nos leitores de todas as idades: o amor aos livros, os sentimentos de solidariedade, a luta contra as injustiças sociais, a louvação aos artistas sonhadores, tudo isso retratado de forma lúdica e criativa.

Neide Medeiros Santos é ensaísta e crítica de literatura infantil. É representante e membro votante da FNLIJ/PB. Trabalho apresentado no 8º Salão do Livro e IV Seminário de Literatura Infantil no Museu de Arte Moderna (MAM- Rio), em agosto de 2006.

Referências Bibliográficas

1. Esse depoimento de Ana Maria Machado se encontra no livro Como e por que ler os clássicos infantis desde cedo.
Cf. MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos infantis desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 7-8.
2. LAJOLO, Marisa. Lobato e Dom Quixote: viajantes nos caminhos da leitura. Pesquisa feita na internet no dia 04/08/2006. http//lobato. globo.com/htlm/novidades.32.htlm.
3. MACHADO, Ana Maria. Op. Cit. p. 9-10
4. MACHADO, Ana Maria. O Cavaleiro do Sonho. As aventuras e desventuras de Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Mercuryo Jovem, 2005, p. 7
5. O fragmento do poema de Mário Quintana foi retirado do livro Lili inventa o mundo. Cf.: QUINTANA, Mário. Lili inventa o mundo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983, p. 3.

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