sábado, 25 de abril de 2009

A Ilha de Cipango na ótica de Samuel Casal





A Ilha de Cipango na ótica de Samuel Casal *

(...)
Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
(Augusto dos Anjos. O Poeta do Hediondo).

Neide Medeiros Santos


Domínio público: literatura em quadrinhos (DCL, 2008) é um livro de múltiplas vozes e múltiplos pincéis. São vários autores (6), vários adaptadores e vários ilustradores. Os escritores selecionados para compor este livro, como o próprio nome indica, escreveram textos que já pertencem ao domínio público, são textos escritos no inicio do século XX.
Foram selecionados textos de Augusto dos Anjos (A Ilha de Cipango); Machado de Assis (A Cartomante); Medeiros de Albuquerque (O Soldado Jacob); Olavo Bilac (Sete Vidas); Alcântara Machado (Apólogo Brasileiro sem Véu de Alegoria); Lima Barreto (O Homem que Sabia Javanês).
Cinco contos e um poema, todos apresentados em quadrinhos, todos não, o poema de Augusto dos Anjos não veio acompanhado das técnicas comuns utilizadas nas HQ, destoa um pouco dos outros. Há uma linguagem pictórica especial para o poema.
O ilustrador Rui de Oliveira, no ensaio “Breve histórico da ilustração no livro infantil e juvenil” (DCL, 2008), que se encontra no livro organizado por Ieda Oliveira - O que é a qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil reconhece a dificuldade de ilustrar poemas e afirma:
“A poesia é um dos gêneros literários mais difíceis de serem ilustrados. Em alguns casos pelo seu intimismo, pela sucessão de metáforas e alegorias encadeadas, sem dúvida um dos momentos máximos de qualquer idioma. Tudo isso dificulta qualquer tipo de concreção visual” (p. 22).
Se já é difícil ilustrar um poema, como afirma Rui de Oliveira, bem mais difícil, certamente, será fazer a adaptação para a linguagem dos quadrinhos, se esse poema é de Augusto dos Anjos a dificuldade se multiplica. Como colocar em quadrinhos “enganos, tristezas, desilusões”?
Voltamos ao pensamento de Rui de Oliveira – o intimismo lírico, a sucessão das imagens poéticas, dificulta concretizar a palavra em ilustração.
Diante desse impasse, vejamos como Samuel Casal, adaptador e ilustrador de “A Ilha de Cipango”, resolveu o problema. Percebe-se que há um jogo simétrico entre texto verbal/ilustração. Bocas escancaradas, coração traspassado, adagas em profusão e muitas cruzes dialogam com o texto com as palavras. O clima fantasmagórico predomina no verbal e nas ilustrações. As cores predominantes são o amarelo ocre, o vermelho e o negro. O branco só comparece em alguns detalhes. Parece que estamos diante do quadro “O Tamarindo”, do artista plástico Flávio Tavares, é tudo sombrio. O único momento festivo surge com o aparecimento da ilha encantada – Cipango, mas este momento é fugidio, dura apenas uma hora, logo surge o “vento da Desgraça” e cobre tudo com o “pano da mortalha”.
Nos comentários que faz sobre este poema, Samuel Casal afirma que é um “dos mais complexos e ricos de Augusto dos Anjos” e se equipara com o Poema Negro, “um dos maiores hinos à tristeza que se pôde escrever em qualquer língua.” (p.48).
A ilha de Cipango, na literatura de Marco Polo e Paulo Toscanelli, guarda semelhanças com o país de São Saruê, do poeta popular Manoel Camilo dos Santos, é uma ilha paradisíaca, um lugar de maravilhas no que se refere à temática, mas “A ilha de Cipango”, do poeta do EU, é o refúgio de amores mortos e, embora a lua cheia brilhe no céu, é uma ilha maldita que só traz tristezas ao eu - lírico.
Samuel Casal chama, ainda, a atenção do leitor para o impacto que a leitura desse poema proporciona e diz “que se deve não somente à linguagem incomum e ao vocabulário cheio de expressões científicas, mas à beleza que o poeta consegue extrair do mau gosto, como os líricos de primeira linha” e cita, entre outros poetas, “irmãos espirituais” de Augusto dos Anjos: Baudelaire, Edgar Alan Poe e Gottfried Benn.
Se compararmos as ilustrações dos contos com as ilustrações deste poema, iremos encontrar muitas diferenças. A linguagem em prosa está mais afeita aos quadrinhos, tudo flui de maneira mais fácil, a poesia requer outros olhares, o desvelar de véus, daí o tratamento especial dado por Samuel Casal ao poema “A ilha de Cipango”, de Augusto dos Anjos.
“Domínio Público – literatura em quadrinhos” foi publicado em julho de 2008 e Augusto dos Anjos figura onde bem merece – ao lado de monstros sagrados – Machado de Assis e Lima Barreto e quem diria... ao lado de Olavo Bilac.

* (Texto publicado no jornal O Norte, em 22 de novembro de 2008. Foram feitas pequenas modificações para apresentação no dia 20 de abril de 2009 – 125 anos de nascimento do Poeta do Eu e Dia do Escritor Paraibano).

domingo, 19 de abril de 2009

Nise da Silveira Uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada.




NISE DA SILVEIRA
Neide Medeiros Santos
Crítica de Literatura

Uma vida não basta apenas ser vivida:
também precisa ser sonhada.
(Mário Quintana)

Nise da Silveira nasceu em Maceió em 1905, era filha única. A escolha de seu nome foi uma homenagem à musa inspiradora do poeta inconfidente Cláudio Manoel da Costa. Estudou medicina na Faculdade de Medicina da Bahia e era a única mulher na turma de 150 formandos. Terminado o curso, mudou-se para o Rio de Janeiro e fez concurso para o Hospital de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental em 1933. Por perseguições políticas foi afastada do cargo de 1936 a 1944 e ficou presa durante alguns meses, no período da ditadura de Vargas.

Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere (vol.1), relembra seu encontro com Nise da Silveira na prisão.

Certo dia foi chamado. Uma das mulheres recolhidas à sala 4 desejava falar com ele. Graciliano estranhou. Quem seria? Afinal dirigiu-se ao pátio e viu uma senhora pálida e magra de olhos fixos, arregalados. O rosto ainda era moço, mas revelava fadiga, alguns fios grisalhos misturavam-se aos cabelos negros. Apresentou-se: Nise da Silveira.

Graciliano lamentou encontrar sua conterrânea longe da profissão do hospital, dos seus queridos loucos. Perguntou pelo marido, seu velho conhecido, também médico, Mário Magalhães, ele estava em liberdade. De pijama, sem sapatos, Graciliano achou-se ridículo e o jeito doce de falar de Nise causava-lhe perturbação. Alguns anos mais tarde, Graciliano homenageou sua conterrânea ao criar a princesa Caralâmpia, no conto A terra dos meninos pelados, uma figura meiga e doce, inspirada em Nise da Silveira.

Em 1946, Nise foi reintegrada à função e fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional no antigo Centro Psiquiátrico Nacional. A Casa das Palmeiras, centro de reabilitação psiquiátrica de esquizofrênicos, foi criada em 1952. Nesta casa, fruto de um ideal de uma mulher que acreditava que a vida não é apenas para ser vivida, mas também para ser sonhada, como bem disse o poeta Mário Quintana, a psiquiatra desenvolveu um trabalho em que os pacientes tinham a oportunidade de se expressar através da Arte - madeiras, pinturas, modelagens, colagens, argila, teatro, dança, expressão corporal. Nise hoje é lembrança, mas a Casa das Palmeiras persiste no tempo.

Além de adotar métodos para tratamento da esquizofrenia, considerados avançados para a sua época - a terapia ocupacional -, a doutora Nise condenava o eletrochoque e a lobotomia. Os recursos utilizados pela médica alagoana para tornar a vida dos esquizofrênicos mais amena estão explicados no livro O mundo das imagens.

Nise da Silveira não foi apenas uma médica que se preocupava com a saúde de seus clientes, era uma pessoa sensível e amante das artes. Estudiosa de Jung nos legou um livro que resume as principais idéias do psicanalista suiço - Jung vida e obra.

No capítulo A obra de arte e o artista, Nise da Silveira discorre sobre os dois processos diferentes de criação artística: o processo psicológico e o visionário e revela que as obras de arte, resultantes da primeira maneira são facilmente compreendidas por seus leitores. Os temas abordados são conhecidos - as paixões, os sofrimentos do homem, seus feitos, as tragédias de seu destino. Os romances de amor, o romance social, a poesia lírica, a poesia épica, comédia e tragédia pertencem ao processo psicológico. Podemos acompanhar as peripécias que se desenrolam nessas obras, mas nunca nos causam sentimentos de estranheza.

As obras de arte visionárias nos proporcionam uma profunda estranheza. O artista sente-se dominado pelo ímpeto da inspiração, a sua obra é maior do que ele. Muitos artistas têm dado depoimentos sobre o processo criador e podemos vislumbrar, nesses depoimentos, lampejos de obras visionárias.

A autora ilustra muito bem a arte visionária de Jorge de Lima. Os primeiros livros do poeta alagoano retratam temas da infância e motivos regionais, tudo bem simples e de fácil compreensão. Houve, depois, uma total transformação na poética de Jorge de Lima. Em Mira Celi e Invenção de Orfeu, o mundo do poeta é o mundo das imagens arquetípicas. Essas imagens não podem ser aprisionadas dentro do nosso mundo lógico, as palavras adquirem autonomia, tornam-se independentes, obscuras, enigmáticas.

Admiradora de Jung, Nise da Silveira afirma que as mais belas páginas que Jung escreveu sobre a alma da criança estão nos dois primeiros capítulos de sua autobiografia - Memórias, Sonhos, Reflexões.

sábado, 11 de abril de 2009

Dom Quixote: o cavaleiro do sonho




Dom Quixote: o cavaleiro do sonho
Por: NEIDE MEDEIROS SANTOS

Ana Maria Machado, no livro Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, relata seu primeiro encontro com Dom Quixote. Esse primeiro encontro não foi com o livro de Cervantes, mas com uma pequena escultura de bronze esverdeada e pesada, pousada na escrivaninha do pai, representando Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança. Quixote, magrelo e tristonho, com uma lança na mão e escudo na outra, montado em um cavalo esquelético; Sancho Pança, gorducho e risonho, montado em um jumento, de braço estendido para o alto, erguia o chapéu e parecia muito contente.

Um dia, a menina curiosa e esperta, perguntou ao pai quem eram aquelas figuras, onde eles moravam. O pai explicou que eles moravam longe, na Espanha e também bem pertinho, dentro de um livro; levantou-se foi até à estante, mostrou o livro “grandalhão” e prometeu que outra hora iria contar a história que estava guardada no livro. A promessa foi cumprida e o pai foi contando, com suas próprias palavras, as aventuras e desventuras de Dom Quixote enquanto mostrava as ilustrações do livro. (1)
Na fase em que já sabia ler, ocorreu o segundo encontro com o cavaleiro da triste figura – Dom Quixote das crianças, uma adaptação de Monteiro Lobato. Lobato, através da voz de Dona Benta, resolve contar, à sua maneira, a história de Dom Quixote aos meninos do sítio do Picapau Amarelo, eliminando os torneios fraseológicos e tornando o vocabulário mais acessível às crianças.
Emília é o personagem que mais se identifica com Dom Quixote e, fascinada pelas maluquices do herói, a boneca começa a dar demonstrações de loucura: veste-se de cavaleiro andante, monta-se em Rabicó, dizendo que este é Rocinante, transforma o Visconde de Sabugosa em Sancho Pança e tenta espetar todo mundo com uma lança. Apavorado com a doidice de Emília, Pedrinho propõe colocar a boneca em uma gaiola como o padre fez com Dom Quixote que, por ser considerado louco, é levado de volta para a casa enjaulado em um carro de bois. Dona Benta, a princípio, concorda com a idéia do neto e sugere a tia Nastácia que coloque a boneca dentro da gaiola do sabiá que havia morrido, mas logo se arrepende desse método tradicional de tratarem os loucos e manda que Emília seja libertada.
No último capítulo, no finalzinho da história, Emília não aceita a idéia da morte de Dom Quixote. A respeito da opinião de Emília, a estudiosa da obra de Lobato, Marisa Lajolo (2) afirma:
Ao final do livro, Monteiro Lobato presta a maior homenagem que um leitor pode prestar a um escritor, e que se torna maior quando o leitor é um escritor. Emília nega-se a ouvir contar a morte de Dom Quixote. Como morreu, se Dom Quixote é imortal? – pergunta a boneca.
Dessa fase lobatiana, Ana Maria revela um grande apreço pelo personagem de Cervantes. Ela recorda os episódios dos moinhos de vento, os rebanhos de carneiros, Sancho Pança sendo jogado para o alto, dentro de uma manta, como se fosse uma bola de jogar, das surras que o pobre Quixote levava, mas ela lembra, sobretudo, de como torcia por aquele herói que queria consertar o mundo, ajudar os sofredores e defender os oprimidos. Dom Quixote não desanimava nunca, era símbolo da persistência, daquele que lutava até o fim. Enquanto as pessoas achavam que Dom Quixote era maluco, riam dele... , ela sentia profunda admiração pelo personagem sonhador.
Para expressar a identidade da escritora com o personagem Dom Quixote, transcrevemos este excerto:
(...) E então as pessoas achavam que Dom Quixote era maluco, riam dele...
Eu não ria. Metade de mim queria avisar ao cavaleiro: “Fique quieto no seu canto, não vá lá, não, porque não é nada disso que você está pensando...” A outra metade queria ser igual a ele. Até hoje. (3)
Certamente, na trajetória da autora de Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, houve inúmeros encontros com as diversas edições de Dom Quixote de la Mancha, mas, objetivamos, nesse primeiro momento, destacar essas leituras feitas na infância.
Um dia, a menina que gostava de ouvir a história de dom Quixote contada por seu pai e que lia Dom Quixote das crianças cresceu, tornou-se escritora e resolveu recriar a mesma história que acompanhou a sua infância para todas as crianças do Brasil. O ano de 2005 era propício, comemorava-se a o 4º centenário da publicação do livro Dom Quixote de la Mancha. Para marcar essa data, surgiram, no Brasil, muitas reedições, traduções, adaptações para o público infanto-juvenil e Ana Maria Machado escreveu O Cavaleiro do Sonho. As aventuras e desventuras de Dom Quixote de la Mancha (3), com ilustrações de Cândido Portinari. O livro recebeu o prêmio Fernando Pimentel – O Melhor livro Reconto (Hors Concours) da Fundação Nacional do livro Infantil e Juvenil (2006).
Aqui, como no texto de Lobato, há duas vozes – a voz de Ana Maria que faz a apresentação e a conclusão do livro e a voz da narradora que conta e recria o mundo sonhado por Dom Quixote. O texto começa com o tradicional Era uma vez... e continua... um homem que sonhava.
Na apresentação, Ana Maria Machado destaca três tipos de sonhadores: aqueles que sonham com uma vida melhor para os outros e para todo mundo; os que acreditam no sonho e resolvem se esforçar para que ele aconteça e, por último, aqueles que estão dispostos a arriscar a sua própria vida em benefício dos outros. É difícil encontrar pessoas sonhadoras dispostas a fazer sacrifícios pelo bem da humanidade, mas elas existem, em quantidade bem pequena, é verdade. Dom Quixote aparece como o tipo de herói mais raro – o sonhador, ele era capaz de lutar e arriscar a sua própria vida para melhorar a vida de seus semelhantes.
Quanto à narrativa, começa situando, sem maiores detalhes, o local onde se passam os fatos:
Em um lugar da Espanha, cujo nome ninguém lembra, mas ficava numa região chamada Mancha, há uns quatrocentos anos, vivia um fidalgo empobrecido. (4)
O pequeno leitor situa, geograficamente, o local onde a história se passa – Espanha, na região La Mancha. No final do parágrafo, surge o nome do fidalgo empobrecido – Dom Quixote.
Prosseguindo o relato, há destaque para um bem precioso do fidalgo – livros, ele era dono de uma biblioteca, quase toda de romances de cavalaria e para comprar livros era capaz de vender um campo ou toda colheita. Os livros eram tão importantes para Dom Quixote, ele se empolgava tanto com as leituras dos romances que os personagens que habitavam esses romances lhe pareciam seres vivos, reais.
Nesse primeiro momento da narrativa, há um aspecto que chama atenção do leitor – a valorização do livro.
Dando continuidade à narrativa, vamos encontrar alguns episódios da vida de aventuras e desventuras do Dom Quixote: ser armado cavaleiro, encontrar um escudeiro fiel e uma bela dama inspiradora de um grande amor. Tudo isso foi realizado, um pouco às avessas. O escudeiro era um lavrador, seu vizinho, chamado Sancho Pança, um camponês simplório, analfabeto e pouco inteligente; a bela dama era Aldonça Lourenço, uma robusta camponesa que morava nos arredores de uma pequena aldeia e recebeu o pomposo nome de Dulcinéia del Toboso.
Vestido com uma armadura velha que havia pertencido a seu bisavô, Dom Quixote parte montado em um pangaré, Rocinante, na companhia de Sancho Pança, este escanchado em um burrico, e juntos perseguem ladrões, malfeitores. Um era nobre, tinha lido muitos livros, o outro era lavrador, analfabeto, mas se tornaram muito amigos e criaram, na opinião da narradora, uma das maiores amizades registradas na história da literatura.
Sancho Pança gostava de citar provérbios e, para cada situação conflituosa, sempre proferia uma sentença condizente com o momento vivido. Depois de inúmeras surras e desventuras, Dom Quixote já se apresentava machucado e abatido, isso inspirou Sancho Pança a dar-lhe o cognome de O Cavaleiro da Triste Figura. O fidalgo gostou tanto da nova denominação que resolveu adotá-la como um título nobre.
Depois de passar por muitas aventuras e desventuras, Dom Quixote resolve se recolher à sua aldeia, mas ficou tão triste que adoeceu gravemente. Sentindo que ia morrer, fez um testamento, deixando sua herança para a sobrinha e para Sancho Pança.
A imortalidade de Dom Quixote, apregoada pela boneca Emília, pode ser comprovada pelas inúmeras edições que saem todos os anos do livro de Cervantes. Quixote continua vivo, vivíssimo.
O Cavaleiro do Sonho. As aventuras e desventuras de Dom Quixote de la Mancha, uma bonita adaptação para crianças, veio corroborar a perenidade desse personagem. Além de um bom projeto editorial, o livro conta com belíssimas ilustrações. A galeria de imagens da série Dom Quixote, de Cândido Portinari, que ilustram essa edição, é formada por 14 quadros com desenhos feitos com lápis de cor sobre papel, papelão, grafite e representam vários episódios vivenciados por Dom Quixote e Sancho Pança.
Destaque-se, ainda, a conclusão do livro; voltam à voz de Ana Maria Machado e a explicação porque Portinari no fim de sua vida passou a pintar com lápis de cor: Portinari utilizava a técnica da pintura a óleo e de tanto pintar adoeceu porque as tintas eram tóxicas e começou a usar lápis de cor para externar sua arte. A série Dom Quixote que ilustra esse livro foi dessa última fase do pintor, da época em que estava proibido de usar as tintas a óleo.
Mas... na vida dos seres humanos sempre surgem desafios e apareceu um convite para Portinari pintar dois grandes painéis, representando a Guerra e a Paz, no edifício da ONU, Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque e Candinho, como era carinhosamente chamado pelos mais íntimos, não resistiu à tentação e resolveu voltar a pintar com as tintas que o envenenavam.
Hoje, quem visita a sede da ONU, encontra dois grandes painéis de Portinari simbolizando, respectivamente, a Guerra e a Paz. O pintor faleceu pouco tempo depois de haver concluído os painéis, mas deixou sua marca de amor à arte e seu sonho de lutar por um mundo mais justo e mais fraterno. Como Dom Quixote, Portinari pertence a galeria mais dignificante dos sonhadores – aqueles que sonham em melhorar a vida de seu semelhante, mesmo em prejuízo de usa própria vida.
A conclusão do livro, uma louvação a Quixote e Portinari, não poderia ser mais feliz e, para celebrar a poesia que envolve O Cavaleiro do Sonho. As aventuras e desventuras de Dom Quixote de la Mancha, recorremos a outro grande sonhador, o poeta Mário Quintana:
(...) Uma vida não basta
apenas ser vivida: também
precisa ser sonhada. (5)

O livro Dom Quixote de la Mancha é considerado um dos melhores livros da literatura ocidental de todos os tempos e a recriação de Ana Maria Machado veio enriquecer o universo literário da literatura infantil brasileira.
A edição bem cuidada, a ilustração do livro com quadros de Portinari, o texto literário poético e a pequena biografia de Cervantes, inserida nas últimas páginas do livro, concorrem para que este livro se torne um referencial de consulta para professores, pais, crianças e estudiosos da obra cervantina. Convém ressaltar que é um livro que deixa marcas nos leitores de todas as idades: o amor aos livros, os sentimentos de solidariedade, a luta contra as injustiças sociais, a louvação aos artistas sonhadores, tudo isso retratado de forma lúdica e criativa.

Neide Medeiros Santos é ensaísta e crítica de literatura infantil. É representante e membro votante da FNLIJ/PB. Trabalho apresentado no 8º Salão do Livro e IV Seminário de Literatura Infantil no Museu de Arte Moderna (MAM- Rio), em agosto de 2006.

Referências Bibliográficas

1. Esse depoimento de Ana Maria Machado se encontra no livro Como e por que ler os clássicos infantis desde cedo.
Cf. MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos infantis desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 7-8.
2. LAJOLO, Marisa. Lobato e Dom Quixote: viajantes nos caminhos da leitura. Pesquisa feita na internet no dia 04/08/2006. http//lobato. globo.com/htlm/novidades.32.htlm.
3. MACHADO, Ana Maria. Op. Cit. p. 9-10
4. MACHADO, Ana Maria. O Cavaleiro do Sonho. As aventuras e desventuras de Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Mercuryo Jovem, 2005, p. 7
5. O fragmento do poema de Mário Quintana foi retirado do livro Lili inventa o mundo. Cf.: QUINTANA, Mário. Lili inventa o mundo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983, p. 3.